Quando criança, fui fisgado pela História de Roma: Rômulo e Remo, os irmãos salvos e amamentados pela loba; os irmãos Horácio,
guerreiros implacáveis contra os campeões de Alba Longa; o general Cincinato,
que não queria cargo nem fortuna, apenas servir a sua cidade. Fui pego por
essas tramas heroicas, que aprendi lendo histórias em quadrinhos, assistindo filmes
na matiné e ouvindo meu pai confirmá-las, dar detalhes, e me conduzir a leitura
de enciclopédias.
Um tema que não tem fim, que até hoje me atrai. Um
tanto porque remete ao meu imaginário juvenil, outro tanto porque constitui um
dos lastros da Civilização Ocidental. A bibliografia a respeito é extensa e
outro dia catei na estante Grandeza e
decadência dos Romanos, de Montesquieu (Editora Paumape, 1995, 164 p.).
Outras edições brasileiras traduzem o título de forma literal – Considerações sobre as causas da grandeza
dos Romanos e da sua decadência – e, dessa maneira, indicam melhor o tipo
de livro que é. O autor não faz um livro de História convencional, mas utiliza
as histórias narradas por Tito Lívio, Políbio, Plutarco e outros como matéria-prima
para as suas reflexões a respeito da dinâmica das sociedades e de seus governos.
Um livro que pressupõe alguma intimidade com a vida política e militar de Roma,
desde a sua fundação até “as misérias” do Império Romano do Oriente. E, aspecto
curioso para um leitor contemporâneo, uma reflexão que aborda o mundo romano
como se fosse semelhante à sociedade europeia do tempo do autor.
Quando publicou esse livro (1734), o barão de
Montesquieu era um intelectual de 45 anos que procurava entender como “um
governo livre” podia se sustentar. Para ele, a Roma Republicana era bem um
modelo para isso, pois “sua constituição se mostr[ava] tal, pelo espírito do povo, a força do Senado ou a autoridade de alguns magistrados, que todo poder sempre pod[ia] ser corrigido”. Preocupado com o exercício do poder,
temeroso dos excessos de autoridade e dos desequilíbrios da ordem, Montesquieu estava
atento às condições de uma sociedade manter o seu rumo, alterar suas leis
(quando necessário) e corrigir os costumes.
Nesse sentido, apostava na aristocracia como elemento
fundamental para manutenção da ordem (os “sagazes aristocratas” com assento no
Senado), reconhecia a função do povo (para aclamar ou não as autoridades, mas
não muito mais do que isso) assim como o papel dos magistrados (com destaque para os
censores) continuamente substituídos nos cargos. Mas, principalmente,
valorizava “o espírito geral” da sociedade – no caso dos romanos, centrado na
disciplina e na austeridade, e muito distante de outros povos “amolentados por riquezas e luxos”.
Os romanos dos primeiros séculos (até o
estabelecimento do Império, com Augusto) eram “apaixonados” pela guerra e não
esmoreciam na formação dos seus soldados. Para exemplificar essa disciplina
militar, o autor se refere por duas vezes a um episódio emblemático do mundo romano
(daqueles exaltados por Tito Lívio), ocorrido na guerra contra os samnitas (no
século IV a.C.). Nessa guerra, o general Mânlio Torquato proibiu os legionários
de deixarem suas fileiras para combates individuais com os adversários. O filho
do general, no entanto, desobedeceu a ordem (deixou as fileiras para uma luta singular)
e, quando regressou vitorioso, o comandante (seu pai) mandou estrangulá-lo. Sem
dó nem piedade, o general exerceu a autoridade necessária para a manutenção da “robusta”
disciplina, elemento essencial da expansão territorial, da manutenção das
fronteiras e da grandeza de Roma.
Como se vê, são virtudes masculinas as que estão no eixo
da construção civilizatória, as quais se perderam quando a sociedade e o Estado
se expandiram além da medida, isto é, dos limites da cidade-estado antiga.
Nenhuma referência ao mundo feminino, a não ser como algo a ser evitado pelos
homens quando no trato da guerra, da política e da administração. Vários nomes
de senadores, magistrados e generais são citados (geralmente de forma elogiosa)
e apenas duas mulheres: Cleópatra e Teodora. Cleópatra, que
“fugiu [na batalha de Ácio] e arrastou Antônio consigo”, e a imperatriz Teodora
(esposa de Justiniano), que se insinuava nos negócios do marido com as “paixões
e fantasias de seu sexo”.
Reflexões que deitaram raízes no entendimento que
temos do mundo romano – mesmo que a historiografia contemporânea não endosse
mais as conclusões ali formuladas. Reflexões que estão entranhadas no modo como
a Civilização Ocidental se construiu: exaltação dos valores guerreiros, dos
costumes austeros, da obediência aos “melhores” (a aristocracia), assim como
desconfiança em relação ao povo, constantemente oscilante “entre os
extremos do ímpeto e os extremos da fraqueza”.
Velha Roma Legionária, na qual era passível de admiração os
“generais condenar[em] à morte seus próprios filhos”, quando eles agiam sem levar
em conta as ordens superiores.
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