quarta-feira, 17 de outubro de 2012


Racismo em Monteiro Lobato

Continua a polêmica em torno da existência de racismo na obra de Monteiro Lobato, em especial sobre um dos seus livros, Caçadas de Pedrinho – provavelmente por ser um dos mais lidos nas escolas. Em 25 de setembro, houve reunião entre representantes do MEC e do IARA (Instituto de Advocacia Racial e Ambiental), o encontro não resultou em acordo e o caso seguiu para o STF. Para o MEC, a questão se resolveria com nota explicativa nas novas edições. Para o IARA, é preciso muito mais, inclusive um maior compromisso do MEC com a capacitação de professores para tratar dos temas raciais. Para o MEC, essa capacitação já vem sendo realizada a contento.
A questão, então, me parece não ser apenas o racismo – ou o uso de estereótipos raciais – na literatura de Monteiro Lobato. Isto é pretexto para uma discussão mais ampla: as condições da sociedade em geral – e da escola em particular – em lidar com eficácia os problemas raciais. Uma questão de raízes históricas que Lobato (1882-1948), nascido em família de cafeicultores escravistas do Vale do rio Paraíba, me parece refletir muito bem, tanto em Caçadas de Pedrinho quanto em Negrinha, outro de seus livros questionado. Refletir com as devidas ambiguidades e tensões próprias da boa literatura.
Para mim, que entende que as questões levantadas pelo IARA estão presentes em outros tantos textos literários canônicos – racismo, sexismo, autoritarismo, colonialismo –, esta é uma discussão que faz parte da leitura e da interpretação de textos. Não vejo porque polemizar com o MEC e, muito menos, levar o caso ao STF.
Mas fiquei instigado pela polêmica e fui reler Caçadas de Pedrinho, logo que começou o debate. Para minha alegria, tive o mesmo prazer que tive quando guri. Que maravilha de texto! Imagino que até hoje a meninada se refestele com a leitura. Bati os olhos numa das passagens destacadas pelos críticos do racismo e não me incomodei. Talvez porque eu não seja negro, dirão alguns. Pode ser.
O tal trecho era o da descrição de tia Nastácia, a preta velha do Sítio do Picapau Amarelo, quando as onças invadem a fazendola. Nessa ocasião, todos os bípedes da casa, mais o Marquês de Rabicó (um leitão) se protegem das feras usando pernas de pau – menos Nastácia. Quando a “onçada” aparece, no entanto, “esquecida dos seus numerosos reumatismos, [Nastácia] trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros”. Na sequência, a boneca Emília faz a onças fugirem e Nastácia pode descer do mastro. Ao final, afastado o perigo dos animais selvagens, tia Nastácia está enturmada nas brincadeiras das crianças e diz: “Agora chegou minha vez. Negro também é gente, Sinhá...”
A frase da personagem encerra o romance e bem indica que tia Nastácia é uma preta velha consciente do que é ser negra numa sociedade recém saída da escravidão. Tia Nastácia quer seu lugar nas brincadeiras das crianças. Mesmo que o narrador utilize estratégias descritivas que podem soar pejorativas (para mim, o resultado é cômico), mais adiante ele coloca na boca da personagem a indignação em relação ao contexto sócio-cultural que permitia a produção de estereótipos racistas. A indignação e a determinação de uma mulher negra para se afirmar no mundo dos brancos. Uma mulher que conhece o seu valor e que, quase cem anos depois de criada pela imaginação de Lobato, ainda é capaz de conquistar leitores.
Será preciso discussão jurídica em torno disso? Discussão no plenário do STF? Penso que não. Sisudos como são os ministros desse tribunal, desconfio que irão fazer serviço de empalhadores de passarinhos e tirar toda graça e leveza do texto de Lobato. Um desserviço para a literatura. Penso que nem a causa da luta contra o racismo ganha com isso.

2 comentários:

  1. Perfeita a cronica. A boa literatura nunca ababa após o livro ser fechado. Quando ao racismo em Monteiro Lobato, acredito que independeste de ser racista ou não, os méritos da sua obra são inalteráveis. O artista é um sr humano, logo tem defeitos. Nelson Rodrigues apoiou a ditadura, Pound apoiou o fascismo,Heidegger o nazismo, nem por isso suas obras deixam de ter valor. Gênios também tem falhas.

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  2. Prezado J.D., quando escrevia sobre Lobato, lembrava de Nelson Rodrigues... Li mais uma vez o seu incrível romance O CASAMENTO, dias atrás, e pensei:
    - O que diriam esses comentadores que querem ajustar a literatura ao politicamente correto, o que diriam a respeito do velho Nelson? Problematizaram à exaustão o modo como ele descrevia negros, gays, epiléticos, padres engajados, artistas engajados, e por aí afora.
    Encontrariam um material precioso para fazer conversas que não teriam fim.

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