Completaram-se cem anos do início da Guerra do
Contestado (1912-1916). Um conflito ocorrido em Santa Catarina ,
numa região então contestada pelo Paraná. Uma área de disputa entre governos
estaduais, de conflitos de terra entre coronéis e sertanistas, e também da
construção de uma estrada de ferro (ligando Rio Grande do Sul a São Paulo), a
qual expulsava posseiros de terras devolutas. No cerne dessa confusão se
organizam grupos religiosos autônomos, inspirados no catolicismo rústico de monges
peregrinos, e geralmente se narra o conflito a partir da atuação dessas organizações.
Os grupos de religiosos e sertanejos (posseiros,
ervateiros, trabalhadores desalojados de suas terras por coronéis ou pela
estrada de ferro) passam a peregrinar pelo interior de Santa Catarina e assustam
as autoridades locais. Tropas estaduais e federais são chamadas a combatê-los e
assim inicia a guerra, em outubro de 1912 (Batalha do Irani). Um ano depois, os
sertanejos se reorganizam, dessa vez com maior disciplina, com a formação de
“cidades santas” e também de grupos de combatentes – os “Doze Pares de
França”, inspirados nas histórias de Carlos Magno. Os Pares de França reuniam
sertanejos hábeis no uso de facões e também com conhecimento da doutrina ensinada pelos monges. A luta tem prosseguimento e o Exército envia
efetivo de seis mil homens para combater os religiosos.
Em sete meses os principais núcleos rebeldes e suas
lideranças são derrotados pelos soldados do Exército. O restante dos combates (até janeiro de 1916) é promovido
por coronéis locais, que realizam algumas barbaridades. Calcula-se em dez mil o
número de mortos (entre combatentes e mortos por doença) e até hoje sobrevive
na região a memória da religiosidade rústica daqueles camponeses e
também a lembrança de atrocidades.
Para quem se interessa pelo mundo religioso (suas
funções, usos e abusos), a Guerra do Contestado é um prato cheio. No caso, a
religiosidade popular, capaz de reunir a população sofrida e lhe dar um norte
de resistência e até de luta, de enfrentamento aos adversários.
Nesse mês, a Revista
de História da Biblioteca Nacional publica um dossiê sobre essa guerra, com
artigos esclarecedores. Entre eles, um sobre o monge Giovanni Agostini,
provavelmente o pioneiro dos monges peregrinos que articularam a religiosidade
que impulsionou os sertanejos de Santa Catarina. O artigo é de autoria de
Alexandre Karsburg e é resultado de pesquisa minuciosa a respeito da trajetória
do monge Agostini. Este religioso (sem formação oficial) nasceu na Itália
(1801) e veio para a América do Sul em 1838. Passou pelo Brasil (1843 a 52) e seguiu pelos
países andinos até a América Central e do Norte. Morreu nos Estados Unidos, em
1869.
Na sua passagem pelo Brasil, esteve em Santa Catarina e
também no Rio Grande do Sul (deu origem à devoção de Santo Antão, nos arredores
de Santa Maria). Sua pregação pelo interior de Santa Catarina é considerada a
matriz da religiosidade dos rebeldes de Contestado. Uma evidência de que nem
sempre a religião serve apenas para nos conscientizarmos na nossa “finitude e
insignificância”, mas também para preparar as armas para enfrentar os inimigos.
No caso de Contestado, para afiar e manejar os facões e combater os jagunços
dos coronéis e também os soldados da Polícia e do Exército.
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