terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Sob a mira de uma metralhadora

Em abril de 1964, logo após o golpe militar, havia um nicho de metralhadora instalado no alto de uma das casas que circundam a Praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas. Sacos de areia protegiam dois soldados em torno de uma metralhadora. Eu andava com meu pai pela rua e perguntei a ele o que era aquilo. Mas não lembro o que ele respondeu. Apenas recordo que o cano da arma estava voltado para nós.
O pai não costumava falar de política. Talvez o desaparecimento de um dos irmãos, logo após o golpe, tenha contribuído para esse silêncio. O tio morava em Porto Alegre, era petebista ligado ao Brizola e sumira nos primeiros dias da “Revolução”. Ninguém sabia o seu paradeiro e apenas sussurrava-se sobre o assunto. Um dia veio a notícia de que ele estava num quartel de Pelotas e uma das suas irmãs resolveu visitá-lo. Alguém tinha que acompanhar a tia e eu fui escalado para companhia. Essa tia era uma anãzinha decidida (muito engraçada e querida pelos sobrinhos) e lá fomos nós, levar cigarros e frutas para o tio.
Um soldado nos recebeu no portão quartel e nos conduziu a um prédio de madeira. Lá dentro, num quarto ensolarado, estava o tio, barba por fazer, magro, a nos receber com um sorriso triste.
Imagem inesquecível para o menino de oito anos que eu era. O tio aparecera, depois de preso pelos militares, sem que fosse dada nenhuma notícia à família. Era comunista, não era? O que tio era? Sobre isso ninguém falava e anos depois ouvi o tio contar que ele estivera numa prisão muito úmida do Rio de Janeiro, da qual avistava o mar por uma janela, e depois o trouxeram para o Sul. Foi solto logo depois sem maiores explicações.
O pai não comentava o caso. Talvez por ter combinado isto com a mãe. Afinal, o único irmão dela era oficial do Exército (provavelmente capitão, na época do golpe) e sobre isto não se dizia palavra. Não se comentava sobre o irmão do pai que era brizolista – depois eu soube, o pecado do tio era ser brizolista –, não se dizia coisa alguma sobre o irmão da mãe, militar do tipo Caxias e apoiador das Forças Armadas desde a primeira hora.
Uma rede de silêncio se tecera no meu ambiente familiar. O vô falava de Gaspar Silveira Martins, o grande tribuno do Império, comentava as façanhas do Zeca Neto, mas não falava do Brizola. E quando meu pai e eu andávamos pela Praça Coronel Pedro Osório, sob a mira de uma metralhadora, ele não respondia às dúvidas do filho. Ele comentava sobre o filme que acabara de assistir no Cine-Teatro Guarany, no qual os nazistas haviam tomado Paris.

2 comentários:

  1. Adorei o texto, Vitor. Esse silêncio todo pode encher uma época, não é mesmo? Eu acho que precisamos de cada vez mais literatura e história e memória escrita desse tempo. Sobretudo das reações das pessoas comuns, de como foram tocadas e de como reagiram. De seus olhares e ativos silêncios.

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  2. acho que o problema maior fosse como lidar com as crianças. muito bom o texto.

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