O jornal Zero Hora assinalou os dez anos da
chegada dos aplicativos de transporte a Porto Alegre.[1]
Naquele tempo (novembro de 2015), apenas o aplicativo da Uber; depois vieram
outros. Eu me tornei um usuário do 99 e creio que isso facilitou muito a minha
vida. O táxi era muito salgado para o
meu bolso e as viagens com os aplicativos se revelaram mais em conta.
Algumas das minhas últimas crônicas, por sinal, têm
sido inspiradas em conversas com esses motoristas de aplicativos. Trajetórias muito
interessantes das transformações no mundo do trabalho. Às vezes relatos heroicos,
de trabalhadores autônomos que se enxergam como empreendedores. Pouquíssimos se
vendo como trabalhadores precarizados, sem amparo na legislação trabalhista.
Na reportagem a respeito do surgimento da Uber,
destaque para “carros em boas condições e oferta de balinhas e água”, mais motoristas
“com trajes mais formais”. A primeira vez que utilizei esse serviço foi para ir
a um show dos Rolling Stones, no Estádio Beira Rio, com meus dois filhos e a
mãe deles. A minha filha chamou o carro por um aplicativo no celular e eu achei
aquilo coisa do mundo d’Os Jetsons (desenho animado da década de 1960, ambientado
num cenário futurista). O motorista todo alinhado ofereceu balinhas e água e eu
nem sabia o que era aquilo. Minha filha me mostrou que era mais barato que um
táxi (e mais acessível e cômodo) e fiquei espantado com as vantagens. Mas levei
um bom tempo para utilizar o serviço.
De certa forma, eu reagi contra essas mudanças
socioeconômicas que transformaram radicalmente o mundo do trabalho. Os
motoristas de aplicativos como um emblema dessas mudanças: trabalhadores
submetidos a grandes empresas, mas com roupagem de empreendedores privados.
Versão urbana dos plantadores de fumo (pequenos proprietários rurais) submetidos
à Souza Cruz. Um perfil novo da dominação do Capital, que tenho dificuldade em
compreender. Meu entendimento do mundo está vinculado a um padrão superado (ou
pelo menos colocado em cheque) pela nova ordem neoliberal.
Minhas conversas com os motoristas de aplicativo,
muitas vezes, vão nesse sentido: como eles se colocam no mundo do trabalho. A
maioria endossando a ideologia do empreendedorismo, um e outro lamentando o fato
de serem trabalhadores sem proteção social.[2]
Alguns foram operários, participaram do movimento sindical, e encaram a
situação de forma diferente. Eles entendem o processo da precarização. Mas são poucos.
Muito poucos.
A reportagem do jornal também destaca uma “queda de
qualidade”, mas isto os aplicativos resolveram criando várias categorias de serviço.
A mais popular, claro, perdeu o charme de dez anos atrás. Então, se o usuário
quer um carro melhor (pra não sujar sua roupitcha ou entrar em contato com o mundo
mais rude da classe trabalhadora) pede uma categoria mais alta e está tudo
resolvido.
É impressionante a capacidade de reinvenção do
Capitalismo.
[1] AIRES,
Anderson. Transporte: o app que mudou a mobilidade urbana na capital. In: Zero
Hora, P. Alegre, 21/11/2025. P. 16-17.
[2] Quando
escuto um desses trabalhadores falarem das vantagens da “flexibilização” e
criticando a Legislação Trabalhista, lembro do Fernando Henrique Cardoso propondo
o desmantelamento da herança varguista, na década de 1990. FHC conseguiu.