quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Dedo apontado para o meu nariz

 

Certa vez uma colega de trabalho me apontou o dedo e disse que eu estava ocupando um lugar indevido no Departamento de História (naquele tempo ainda denominado “faculdade”). Isto é, estava lecionando uma disciplina no Curso de Especialização, sem ter qualificação acadêmica para isso.

Eu fiquei escutando-a falar, espantado. Ela veio na minha casa fazer a acusação e eu sequer desconfiava da irregularidade. Fazia ano e meio que ingressara na UFSM, a Coordenação do Curso me chamara para assumir essa disciplina e eu, apesar de achar pedreira a tarefa (era uma disciplina sobre metodologia de ensino), não titubiei e aceitei.

Tinha experiência de treze anos no Magistério Estadual e recordo que a coordenadora falou que isso me habilitava para a disciplina: a prática. As questões teóricas eu iria resolvendo com o tempo.

Eu era mestrando, estava escrevendo a dissertação, e minha rotina não era fácil. A colega colocou o dedo na frente do meu nariz e eu não disse nada. Escutei ela falar, depois ela ir embora, feliz da vida com sua atitude de defensora da legalidade acadêmica, o “respeito ao regimento do curso”, segundo ela própria. Afinal, como um reles graduado, sem um título de pós-graduação, eu não tinha mesmo qualificação para estar onde estava: lecionando uma disciplina num Curso de Pós-Graduação.

Engraçado que mais de trinta anos depois eu lembro disso: especialmente o dedo apontado para mim. Possivelmente porque a acusação de estar num lugar indevido me pegou. Ainda pega.

Fui criança nascida numa família de classe média (pai, bancário; mãe, professora primária), morava na Zona do Porto, em Pelotas, com muitos vizinhos proprietários de terra, e recordo meu amigo Robertinho me falando a respeito das terras e gado e ovelhas que o pai dele tinha no município de Santa Vitória do Palmar (nós dois com dez anos de idade, sentados no meio fio da calçada). Achei bacana aquela grandeza toda, quis me colocar à altura e falei que meu pai trabalhava num banco, “um lugar de muito dinheiro”. Meu amigo prontamente rebateu:

– Mas nada disso é dele. Ele é empregado do banco. A terra, o gado e as ovelhas SÃO do meu pai.

Escutei calado, concordando. Meu amigo acabara de me colocar no meu lugar, uma posição que era inferior à sua família, e engoli em seco. Não deixamos de ser amigos, também não me senti muito inferiorizado, mas entendi o recado. No mundo social pelotense, ele estava melhor na foto do que eu. Eu estava fora daquele círculo social de estancieiros, matriz histórica do Rio Grande do Sul.

O que minha colega me dizia naquela tarde, me apontado o dedo para o meu nariz tinha alguma relação com aquela experiência infantil? Creio que sim. A mesma sensação de que eu estava deslocado, não estava no centro. Ou, se estava (no caso, lecionando num curso de especialização), alguma coisa tinha de errado.

Tanto Robertinho como minha colega falavam a respeito da minha condição... Mas, em relação à professora que punha o dedo no meu nariz, havia uma nota cômica na sua petulância. Ela claramente se colocava disputando espaço e posição profissional comigo. Eu ganhara o lugar que ela almejara. Atendera ao chamado da minha chefe e, sem saber, passara a perna nas suas pretensões.

Continuei a lecionar a disciplina de Metodologia do Ensino, no Curso Especialização, defendi a dissertação no final do ano e logo estava com o título e a qualificação acadêmica devida. Tudo se arranjou. Mas o dedo apontado para o meu nariz ficou. Nunca esqueci. Lembrando, talvez, que ainda devo lutar pelo lugar onde me encontro. Um território sempre conquistado, que precisa ser preservado, defendido.

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