João Alberto completou 70 anos e pertence a uma geração
que estudou francês no Ginásio e no Curso Clássico. Cedo ganhou familiaridade
com o imaginário francês e passou a admirar seus artistas. Leu Baudelaire,
Flaubert e Maupassant (em tradução), assistiu aos filmes de Godard e Truffaut,
e sonhou em ser poeta. Até fez alguns poemas e ganhou concurso literário quando
estudante. Mas um primo escritor lhe avisou que a coisa não era fácil e ele guardou
a literatura para os finais de semana e, por fim, a esqueceu.
Dedicou-se a advocacia, abriu escritório e ganhou
dinheiro, o suficiente para possuir um apartamento na cidade, uma casa na
praia, trocar de carro regularmente e até financiar o da esposa. Deu vida boa
para os três filhos e eles puderam cursar a universidade sem trabalhar e só sair
de casa só quando tiveram renda para bancar a própria sobrevivência. Com o seu
talento para as letras jamais conseguiria coisa igual.
Mas aos 70 anos se deu conta que um velho sonho não
desaparecera: conhecer Paris. Navegar pelo Sena como os personagens de
Maupassant, cruzar na rua por mulheres fascinantes como nos poemas de
Baudelaire, amar num quartinho minúsculo como num filme de Godard. Viajara
pouco, sendo Buenos Aires e Cancún os seus únicos destinos no exterior, esse
último devido à insistência da esposa, que dissera que “todo mundo conhece, é
maravilhoso”.
Naquela viagem a Cancún, aos 60 anos, se deu conta
que perdera a paixão pela vida e entrara em outra etapa da existência. Gostava
de trabalhar, isso sim, e eventualmente lia algum romance. Naquela temporada
mexicana, fizera um sexo protocolar com a esposa e depois a assistira caminhar
pelo quarto, abrir as cortinas para o mar do Caribe e a ouvir falar de outras
viagens que precisavam realizar.
– A Europa, João Alberto, aquele tour que sonhamos tantas
vezes: Lisboa, Madri, Paris.
– Não, eu não sirvo para isso – ele disse,
sentando-se na cama, servindo-se de uma garrafa de vinho branco mergulhada num
balde de gelo. – Vai com as amigas, tu vais te divertir mais. Eu virei um
chato.
– Um acomodado, isso sim. Um velho, muito antes da
hora. Tu podias reagir.
Ele riu e não falaram mais no assunto. Ela viajou
para a França, Itália e Egito, sempre com as amigas, enviando cartões postais no
princípio (como ele pedira) e depois apenas fotos pelo WhatsApp.
Agora, com 70 anos nas costas, João Alberto retoma um velho
sonho de estudante, mas não quer a companhia da esposa. “Uma viagem romântica”,
ele imagina, com uma companhia que lhe acenda antigos ardores. Pensou encontrar
isso em Rosângela, uma cliente de 47 anos, que ele atendeu num caso de
separação litigiosa, e tem conversado com ela a respeito. Uma noite eles
beberam espumante no apartamento dela, fizeram amor e ele recitou Baudelaire. O
francês saiu estropiado, mas lembrou-se da tradução e ela o abraçou com um carinho
inédito para ele.
“Minha doce irmã, / Pensa na manhã / Em que iremos,
numa viagem / Amar a valer, / Amar e morrer. / No país que é a tua imagem! /
(...) / Lá, tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor.”[1]
Assistindo a um filme na Netflix descobriu que há congressos acadêmicos na área do Direito, na Universidade de Sorbonne, e inventou que é este o seu próximo passo: a inscrição num evento universitário, o pretexto para a almejada viagem. Falou com um dos sócios do escritório e ele, que é professor universitário, ficou de lhe acertar os detalhes.
– Claro que não iremos juntos – ele avisou
Rosangela. – Eu irei primeiro e te esperarei no Charles De Gaulle. Reservarei
um quarto num hotel de Montemartre, um passeio no Bateaux Mouches, um jantar na
Torre Eiffel e as obrigatórias visitas ao Louvre e ao D’Orsay.
Rosangela riu e não soube se devia acreditar ou
não. “É um farsante tirando onda comigo”, ela pensou, “mas vou embarcar na
fantasia. Por que não?” Sentiu que aqueles planos o entusiasmavam, o tornavam
mais ardente na cama e era disso que precisava. Rosangela explicou que não
estudara francês na escola – “Uma disciplina que a reforma educacional
suprimiu” –, que sempre preferiu o universo da língua inglesa, conheceu Nova
Iorque, Miami, mas apreciava a cultura europeia.
– Tudo que tu falas é novidade para mim. Estou
aprendendo contigo.
João Alfredo se alvoroçava se imaginando em Paris e
lembrava o adolescente que fora frequentando a biblioteca da escola para ler a
respeito da cultura francesa. Sentia voltar a antiga admiração pelos assuntos
tradicionais do universo francês – o escândalo provocado por “Flores do Mal”, o
processo judicial causado por “Madame Bovary”, a revolução desencadeada pelos impressionistas
– e achava graça que isso ainda fazia sentido para ele... Sentia também a força
do sexo lhe vir renovada (turbinada, é claro, por um comprimido azul) e
racionalmente decidiu manter a fantasia da viagem até quando pudesse suportar. Talvez
fosse o último delírio da sua vida e não se impediria de sonhar. Cultivaria com
zelo e carinho esse projeto de viagem com a amante, cuidando para não abalar seu
casamento, a vida que construíra com empenho e sacrifício. Nem a esposa
gostaria disso e lhe agradeceria muito se a mantivesse ignorante em
relação ao assunto.