Dou continuidade à lista e comentários dos dez filmes
que me marcaram. E acrescento: não são necessariamente as produções mais
geniais do cinema, mas os filmes que me emocionaram, me empolgaram e, por uma
razão ou outra, não esqueci. Às vezes foi devido à temática (um tema histórico,
por exemplo), à eficácia da narrativa, ao desempenho dos atores, ao erotismo e
assim por diante. Ou tudo isso junto.
Curiosamente, os cinco primeiros filmes listados (na
crônica anterior) foram assistidos quando eu era criança e morava em Pelotas. Em
1967, com 11 anos de idade, minha família veio para Porto Alegre e foi nos
cinemas dessa cidade que assisti os filmes abaixo. Filmes da minha adolescência
e juventude. Todos eles inesquecíveis.
6. “Les femmes”. Direção de Jean Aurel. Com Brigitte
Bardot. França/Itália, 1969. 86 min.
Filme erótico. Não lembro a trama. Brigitte Bardot
corre nua pelo campo. Brigitte Bardot rola na cama com o seu amante, os dois
insinuando relações sexuais – nada muito explícito, mas o suficiente para
excitar as plateias dos anos 60. (Escrevo baseado apenas na memória, nunca mais
revi o filme.) A câmera percorre lentamente o corpo da atriz deitada de bruços (fotografia
acima) e o amante a acaricia e beija com vagar e delicadeza. Eu tinha 14 ou 15
anos e cursava o ginásio numa escola católica. O professor de Língua Portuguesa
fazia discursos furibundos na sala de aula, criticando os filmes “com cenas de
nudez e carícias lascivas” e “Les femmes” parecia ser uma dessas fitas que ele atacava.
Justamente o filme que o Cine Colombo, a quatro quadras do colégio, estava
exibindo e que todos nós, alunos, tínhamos visto os cartazes. Um amigo conhecia
porteiro do cinema e nos garantiu que conseguiríamos entrar desde que
pagássemos uma gorjeta ou algo assim. Entramos no cinema. Corremos para o
mezanino e lá ficamos “escondidos”, extasiados. Não, não lembro de algum de nós
utilizando uma das mãos para dar continuidade à empolgação. Tudo no maior
respeito. Isso fazia parte do acordo com o porteiro.
7. "Toda nudez será castigada". Direção de Arnaldo Jabor. Com Darlene Glória, Paulo Porto e Paulo César Pereio. Brasil, 1973.
7. "Toda nudez será castigada". Direção de Arnaldo Jabor. Com Darlene Glória, Paulo Porto e Paulo César Pereio. Brasil, 1973.
Esse filme foi minha porta de entrada na obra
literária de Nelson Rodrigues – que eu conhecia apenas das crônicas
(Confissões) que o jornal “Folha da Tarde” publicava. Fiquei fascinado com o
retrato debochado, trágico-cômico, da tradicional família brasileira
apresentada no filme. Uma família regida por padrões de moralidade sexual
extremamente rígidos e com forte marca católica. Muita repressão sexual e muita
culpa. De certa forma, uma abordagem dos dramas humanos semelhante ao do romance “O casamento", no qual um padre afirma: "Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva". A mesma exacerbação das paixões e da culpa. No filme, um viúvo transtornado pelo recente falecimento da
esposa, promete ao filho nunca mais conhecer outra mulher. Depois, induzido
pelo irmão malandro e aproveitador (interpretado por Pereio), conhece a
prostituta Geni (interpretada maravilhosamente por Darlene Glória) e gama (fotografia acima). Ele se casa com a prostituta, traz a
mulher para morar com a sua família e ela se envolve com o filho do viúvo. Geni desperta as paixões de pai e filho, vira ao avesso a família,
desmonta os seus valores e ela própria também se desestrutura. Os principais personagens se afundam na culpa (Geni se suicida) e nada se salva – mas a plateia
do cinema se diverte. Visto hoje, uma interpretação demasiadamente cômica da tragicomédia
rodriguiana. Um filme datado – não consegui rever até o final. Mas sem dúvida
impactante naquele início dos anos 70: uma leitura ousada da sociedade brasileira
do período, que, apesar da modernidade capitalista promovida à força pelo
Regime Militar, ainda estava mergulhada em valores arcaicos (do tempo da
República Velha e muito mais).
8. “O amuleto de Ogum”. Direção de Nelson Pereira dos
Santos. Brasil, 1974. 112 min.
Um violeiro cego (interpretado por Jards Macalé – foto acima - também autor da trilha sonora) canta a história de um retirante nordestino que
vêm para o município de Caxias (no estado do Rio de Janeiro) e se transforma
num pistoleiro de bicheiro (este último, interpretado por Jofre Soares). Detalhe
importante: quando criança, o futuro pistoleiro viu o pai ser assassinado e foi
levado pela mãe a um terreiro de Umbanda para ter o corpo fechado. A narrativa
reúne a tradicional violência rural nordestina com a nova violência das
vertiginosas metrópoles do Sul Maravilha. Vinculação entre os dois espaços sociais
(o rural tradicional e o urbano moderno) por meio de um personagem com
atributos sobrenaturais. A cena da ressurreição do pistoleiro – o rapaz salta do
fundo das águas com armas em punho – é inesquecível. Um enfoque surpreendente
do universo religioso e social das classes populares. A religiosidade de matriz
africana e as condições de vida das classes populares na periferia da
megalópole carioca. Para o estudante de História que eu era na época, uma
narrativa cinematográfica que inovava as abordagens da realidade brasileira, na
medida em que era mais dinâmica e mais vinculada ao ponto de vista popular – diferente
das narrativas de outros filmes do Cinema Novo (que eu andava assistindo nas
sessões de cineclube). Me parece que o filme é um ponto de virada na abordagem
do universo popular. Mas nunca mais revi o filme. Escrevo com a lembrança do
grande prazer que o filme me proporcionou. “E quem não gostou dessa história vá
pra puta que pariu”, canta o violeiro cego na última cena do filme.
9. “Último tango em Paris”. Direção de Bernardo
Bertolucci. Com Marlon Brando, Maria Schneider e Jean-Pierre Léaud. Música de
Gato Barbiere. Itália/França, 1972. 129 min.
O filme foi um sucesso na Europa e censurado no
Brasil. Enquanto não chegava às telas brasileiras, li o romance que deu origem
ao filme e não gostei. Quando a película foi liberada e entrou na programação
do Cine Cacique (ou será que foi no Scala?), fui dos primeiros a assistir (em dezembro
de 79, provavelmente). O desempenho dos atores, a trilha sonora jazzística, a
fotografia, a trama, os diálogos, tudo funciona muito bem. A princípio parece
apenas uma aventura erótica entre um homem maduro (Paul) e uma mulher jovem (Jeanne)
– homem e mulher que recusam revelar suas identidades e apenas viver seus
impulsos sexuais –, mas logo a trama entre o casal se revela muito mais
complexa, de uma densidade impressionante. O ponto de virada talvez seja o monólogo
de Paul (Marlon Brando) diante do corpo da sua esposa, que havia se suicidado. Fica
explicado o desespero e a desesperança do personagem. Enquanto Paul quer
distância da lembrança da esposa morta, Jeanne (Maria Schneider) parece quer algo
mais vital que a sua relação com um noivo enlouquecido por cinema (Jean-Pierre
Léaud). Jeanne e Paul se relacionam como se apenas o sexo bastasse. Quando Paul
tenta mudar o padrão da relação e revelar a sua identidade, Jeanne recua. No final,
a cena do assassinato de Paul é um tango argentino desesperador, trágica e
debochada. Paul entra no apartamento de Jeanne, a moça pega o revólver do pai,
dispara e o amante morre na sacada, diante da paisagem parisiense. Antes de
cair no chão, Paul sorri, tira o chiclete da boca e o gruda no parapeito da
sacada. Enquanto isso, a moça murmura o que dirá para a polícia: que ela não
conhecia aquele homem, que ele a perseguiu pela rua, invadiu sua casa e tentou violenta-la.
A mocinha vence o homem madurão, cínico e debochado – e talvez vá casar com seu
noivinho alucinado por cinema. Assisti várias vezes esse filme e sempre me
surpreendi. Uma obra-prima.
10. “Sonata de outono”. Direção de Ingmar Bergman. Com
Ingrid Bergman e Liv Ullmann. Suécia, 1978. 99 min.
No meio da enxurrada de filmes de temática histórica,
social e política que assisti nos anos 70, a cinematografia de Bergman era um
aviso de que havia muito mais a investigar e entender que “o mundo determinado
pelas condições materiais da existência”. Mais do que a realidade sócio-política,
havia a complexidade da “alma humana”, sua psicologia e também sua inquietação
com o sobrenatural. O primeiro filme que assisti desse cineasta foi “A hora do
amor” (1971), considerado menor na sua produção, mas com uma cena que me marcou:
um arqueólogo descobre uma estátua de Nossa Senhora esculpida em madeira e
identifica nela uma colônia de insetos que a estão devorando. Em determinado
momento ele a ilumina com uma lanterna e diz para a mulher a seu lado (com quem
está tendo um caso) que aquela representação do sagrado, como tudo, está com
data marcada. As palavras não são essas, claro, mas creio que o sentido é esse.
O adolescente que eu era ficou impactado: o mundo do sagrado também era
devorado pelo tempo, o implacável tempo. “Sonata de outono”, por sua vez, é um
dos títulos mais elogiados de Bergman. Relembrei tudo outro dia revendo o filme
no Telecine. Liguei a TV e peguei justamente na cena da fotografia acima: uma
filha (Liv Ullmann) dialoga com a mãe, célebre pianista (Ingrid Bergman). As duas
estão diante de um piano. A filha toca uma peça de Chopin para a mãe constatar o
seu progresso e a mãe não é nada condescendente. Até tenta ser compreensiva com
a filha, mas logo assume seu papel de exímia pianista e pouco a pouco corrige a
filha e a ensina a interpretar corretamente aquela peça musical. Nem naquela
hora, na intimidade de uma conversa com a filha, Charlotte (esse é o nome da
exímia pianista) consegue ser uma mãe amorosa. Os olhos de Helena, a filha, vão
se transformando (na medida em que a mãe fala e corrige), os olhos vão deixando
aflorar as mágoas que a filha traz desde criança. “Eu te amava, mamãe, era uma
questão de vida ou morte (...). Quando eu era criança, eu a sentia no meu corpo
todo. Mas eu sentia que você não falava com o coração”. A mãe continua não
falando com o coração. O filme é isso: uma tentativa de acerto de contas entre
uma filha madura e sua mãe. Elas se dizem praticamente tudo que é possível
dizer (muito mais do que a maioria das filhas e mães conseguem se dizer,
imagino) e as coisas não se resolvem. Se a trilogia “O tempo e o vento”, de
Érico Veríssimo, me ensinou a respeito do lugar do Pai na vida de um filho (por
meio da relação entre Floriano e seu pai, o doutor Rodrigo Cambará), acho que
esse filme me ensinou a respeito do lugar da Mãe. Especialmente quando a mãe
não desempenha o papel amoroso que os filhos desejam. Tudo nesse filme é
primoroso – as atrizes, então, excepcionais. Revendo o filme na TV, tive a certeza
de que o cinema ocupa uma posição especial na minha vida. Diversão, aprendizagem,
reflexão, prazer.
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