sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Memórias de Lygia Fagundes Telles


Encontrei numa livraria de shopping um livro de memórias de Lygia Fagundes Telles – Durante aquele estranho chá – e me deparei com uma pergunta que a autora se fez quando começou a ler a poesia de Drummond, em 1944: “aquele mundo de desencanto e de náusea devia mesmo ser cantado em verso?” A escritora tinha 21 anos de idade, era estudante da Faculdade de Direito, em São Paulo, já conhecia os autores modernistas – Mário de Andrade, Bandeira, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes –, mas nenhum tão radical como Drummond. Ficou impactada.
Livro de memórias e ficção, Durante aquele estranho chá me fisgou completamente e o li em poucas horas. Uma prosa cativante, na qual “a grande dama da literatura” reconstitui parte da sua formação e vivência. Memórias de seus encontros com escritores, leituras, participação em congressos internacionais, conferências e também viagens com o segundo marido, Paulo Emílio Sales Gomes. Encontros com Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Jorge Luís Borges, Simone de Beauvoir, Hilda Hilst e Clarice Lispector, entre outros – e, principalmente, leitura de Machado de Assis, um autor fundamental na sua obra de contista e romancista. Livro revelador dessa autora que admiro muito.
Aos 21 anos, além de entrar em contato com a poesia de Drummond, a escritora – já autora de alguns contos – escreveu para Mário de Andrade e este a convidou para um chá (o estranho chá referido no título). Um chá na Confeitaria Vienense, na Rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, durante o qual ela revelou as suas “ousadias”: ingressar numa “escola masculina” (a Faculdade de Direito do Largo São Francisco) e exercer “um ofício de homens” (escrever literatura de ficção). A autora calçava luvas, havia sons de piano e violinos – “tudo era finíssimo naquela confeitaria” – e os poucos passantes que cruzavam a rua eram bem vestidos, com chapéus de feltro e gravatas (até os estudantes usavam gravatas). Recordando a cena quase sessenta anos depois, Lygia se perguntou onde estava o povo, os camelôs e os mendigos...
Uma moça da “classe média em decadência”, segundo ela própria, a autora não se considerava uma feminista nem nunca se viu como tal. Como explicita numa das crônicas, entende que uma das maiores revoluções do século XX foi a Revolução da Mulher e não a Revolução Feminista – e foi naquela que ela se integrou. Uma revolução feita de forma prudente e paciente, na qual a mulher foi saindo da condição de invisibilidade e foi "se desembrulhando e se explicando" – como fez Gilka Machado escrevendo sobre o amor sexual em “flamejantes poemas”. Uma revolução sem os ressentimentos e agressões – “contra o primeiro sexo e até contra o próprio” – como foi o caso da revolução feminista, segundo a autora.
Lembrei do romance As meninas (1973), que li e reli, ao entrar em contato com as reflexões da autora sobre o movimento feminista. Nessa obra, três moças vão se explicando, se revelando – se desembrulhando de todos os silêncios a que as mulheres foram submetidas – e a mais prudente é a que teve melhor sorte. Um grande livro, um dos meus preferidos, talvez emblemático dessa fabulosa escritora, que nunca abandonou o lirismo (aprendido na leitura dos românticos, de Álvares de Azevedo e outros) e que soube articulá-lo com o desencanto, a náusea e a miserabilidade do mundo (que talvez tenha lido primeira vez em Drummond). Autora de uma literatura delicada, “palpitante de emoção e humanidade”, como disse Caio Fernando Abreu.

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TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: memória e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 160 p. Livro escrito em 2002, a pedido de um pós-graduando que preparava dissertação sobre a autora, e revisto em 2010.


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