A Guerra do Paraguai (ou Guerra da Tríplice Aliança)
não ocupa muito espaço na nossa literatura de ficção. No gênero romance,
conheço apenas “A solidão segundo Solano López” (1980), de Carlos de Oliveira
Gomes, “O rastro do Jaguar” (2009), de Murilo Carvalho – ambos com
características de romance histórico, isto é, sem ruptura com a discurso
historiográfico – e “Avante, soldados: para trás” (1992), de Deonísio da Silva
– de caráter satírico, com intenção de subverter o discurso historiográfico. Provavelmente
existam outros títulos (tomara que existam), mas fico com os citados,
especialmente os dois primeiros por se adequarem ao meu modo de pensar o mundo
e a literatura.
Reli “A solidão segundo Solano López” semanas atrás e
gostei muito. Tinha uma boa lembrança do livro e confirmei essa impressão. Escrito
no final dos anos 70, o romancista faz um prólogo onde explicita o seu
alinhamento com o revisionismo histórico da época (que entendia a guerra contra
o Paraguai devido às pressões do imperialismo britânico), e se propõe a um
quadro geral do conflito militar. A tese da pressão imperialista foi contestada
posteriormente (um dos seus principais expoentes, o argentino Leon Pomer,
reconheceu o exagero da interpretação), mas a narrativa ficcional de Oliveira
Gomes não fica prejudicada por conta disso.
Romance vigoroso, a narrativa acompanha a invasão dos
exércitos da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai) a partir dos seus
comandantes militares (Mitre, Caxias, Osório), enfoca também o lado paraguaio, sob
o comando absoluto de Solano López, e o leitor tem uma visão geral do conflito,
o passo a passo da guerra. No que diz respeito ao lado paraguaio, a narrativa
também enfoca as disputas internas, como o surgimento de uma resistência ao
ditador Solano López e o modo como esses opositores são neutralizados – neste último
caso, com o auxílio da “terrível” Madame Lynch, esposa do ditador.
Mas o autor não enfoca apenas os ilustres personagens
históricos (Mitre, Caxias, Osório, Solano López e Madame Lynch). Cria também um
outro eixo narrativo, composto por personagens menores (provavelmente
fictícios), e amplia o leque social dos atingidos pela guerra. Nesses personagens
menores (homens e mulheres que não conquistaram lugar nos tradicionais livros
de História) a guerra escreve de forma mais dolorosa o seu espectro de horrores
e parece ser essa a intenção do autor: revelar o sofrimento que grandes
interesses econômicos e políticos em confronto são capazes de produzir na
população em geral. Presidentes e imperadores, diplomatas e generais movem-se
orientados por grandes projetos – de organização da economia internacional, de
formação de Estados Nacionais –, arrastam exércitos para a concretização de
seus objetivos (às vezes caprichos), e isso se faz com uma soma de sofrimentos
incalculáveis, não apenas de soldados, mas da população civil também.
Detalhe de quadro de Cándido López.
|
Pelo olhar do jornalista (que envia artigos para um
jornal parisiense) temos uma visão geral da guerra, enquanto pelo lado do índio
ganhamos a perspectiva da grande massa indígena que atende aos apelos de Solano
López e luta bravamente sob seu comando. Segundo o personagem narrador, os
guarani (que constituíam o exército paraguaio) aguardavam um profeta-guerreiro
que viria reerguer a nação indígena e identificaram no ditador essa figura
mítica. Daí o engajamento dos índios e seu comprometimento na luta.
Equivocadamente os guarani lutaram pelo projeto de Estado Nacional de López
entendendo como um projeto que recuperasse também a dignidade indígena.
Como o romance é narrado por um europeu, a nação
guarani é comparada aos antigos povos bárbaros que se constituíram em nações
organizadas na Europa, posteriormente em Estados, num longo processo histórico
que atravessou a Antiguidade, a Idade Média e se consolidou nos séculos XVIII e
XIX. Um tempo histórico que os guarani não tiveram para si. Os indígenas foram
engolfados por um processo civilizatório no qual eram os sócios menores e, durante
a Guerra do Paraguai, estavam envolvidos numa luta de Estados Nacionais em
formação, todos de matriz europeia (Paraguai, Brasil, Argentina), e para esse
banquete os indígenas não eram convidados – a não ser como bucha de canhão.
Muito melancólico esse romance de Murilo Carvalho e muito
atual também, na medida em que as lutas indígenas se renovaram nos últimos
vinte anos, tanto no Brasil como na América Latina. Os povos indígenas procuram
se recolocar na cena político-cultural e as lutas do século XIX seguramente
ainda servem de material para reflexão. A Guerra do Paraguai continua sendo um
depositário de grandes histórias – histórias importantes na nossa formação
social – e às vezes estranho que poucos ficcionistas se aventurem a revive-la.
Nenhum comentário:
Postar um comentário