sexta-feira, 13 de julho de 2018

Guerra do Paraguai e literatura de ficção


A Guerra do Paraguai (ou Guerra da Tríplice Aliança) não ocupa muito espaço na nossa literatura de ficção. No gênero romance, conheço apenas “A solidão segundo Solano López” (1980), de Carlos de Oliveira Gomes, “O rastro do Jaguar” (2009), de Murilo Carvalho – ambos com características de romance histórico, isto é, sem ruptura com a discurso historiográfico – e “Avante, soldados: para trás” (1992), de Deonísio da Silva – de caráter satírico, com intenção de subverter o discurso historiográfico. Provavelmente existam outros títulos (tomara que existam), mas fico com os citados, especialmente os dois primeiros por se adequarem ao meu modo de pensar o mundo e a literatura.

Reli “A solidão segundo Solano López” semanas atrás e gostei muito. Tinha uma boa lembrança do livro e confirmei essa impressão. Escrito no final dos anos 70, o romancista faz um prólogo onde explicita o seu alinhamento com o revisionismo histórico da época (que entendia a guerra contra o Paraguai devido às pressões do imperialismo britânico), e se propõe a um quadro geral do conflito militar. A tese da pressão imperialista foi contestada posteriormente (um dos seus principais expoentes, o argentino Leon Pomer, reconheceu o exagero da interpretação), mas a narrativa ficcional de Oliveira Gomes não fica prejudicada por conta disso.

Romance vigoroso, a narrativa acompanha a invasão dos exércitos da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai) a partir dos seus comandantes militares (Mitre, Caxias, Osório), enfoca também o lado paraguaio, sob o comando absoluto de Solano López, e o leitor tem uma visão geral do conflito, o passo a passo da guerra. No que diz respeito ao lado paraguaio, a narrativa também enfoca as disputas internas, como o surgimento de uma resistência ao ditador Solano López e o modo como esses opositores são neutralizados – neste último caso, com o auxílio da “terrível” Madame Lynch, esposa do ditador.

Mas o autor não enfoca apenas os ilustres personagens históricos (Mitre, Caxias, Osório, Solano López e Madame Lynch). Cria também um outro eixo narrativo, composto por personagens menores (provavelmente fictícios), e amplia o leque social dos atingidos pela guerra. Nesses personagens menores (homens e mulheres que não conquistaram lugar nos tradicionais livros de História) a guerra escreve de forma mais dolorosa o seu espectro de horrores e parece ser essa a intenção do autor: revelar o sofrimento que grandes interesses econômicos e políticos em confronto são capazes de produzir na população em geral. Presidentes e imperadores, diplomatas e generais movem-se orientados por grandes projetos – de organização da economia internacional, de formação de Estados Nacionais –, arrastam exércitos para a concretização de seus objetivos (às vezes caprichos), e isso se faz com uma soma de sofrimentos incalculáveis, não apenas de soldados, mas da população civil também.

Detalhe de quadro de Cándido López.
Já  em “O rastro do Jaguar”, de Murilo Carvalho, a abordagem é diversa, com outro tom (menos épico) e outra maneira (originalíssima) de enfocar o mesmo conflito militar. Nesse romance, um jornalista europeu (nascido em Portugal, criado na França), na virada do século XIX para o XX, se põe a escrever suas memórias, tendo como foco a trajetória de um amigo que ele acompanhou em viagem pelo Brasil (Bahia, Rio Grande do Sul) e Paraguai. O amigo fora levado criança para a França (pelo viajante Auguste Saint-Hilaire, que o adotara quando passou pelo Rio Grande do Sul, em 1820-21) e criado no continente europeu como se fosse francês. Aos 40 anos esse amigo do narrador descobre sua identidade guarani e decide voltar ao Brasil em busca do seu povo. Esse regresso coincide com a Guerra do Paraguai e tanto o jornalista quanto o índio se veem envolvidos pelo conflito.

Pelo olhar do jornalista (que envia artigos para um jornal parisiense) temos uma visão geral da guerra, enquanto pelo lado do índio ganhamos a perspectiva da grande massa indígena que atende aos apelos de Solano López e luta bravamente sob seu comando. Segundo o personagem narrador, os guarani (que constituíam o exército paraguaio) aguardavam um profeta-guerreiro que viria reerguer a nação indígena e identificaram no ditador essa figura mítica. Daí o engajamento dos índios e seu comprometimento na luta. Equivocadamente os guarani lutaram pelo projeto de Estado Nacional de López entendendo como um projeto que recuperasse também a dignidade indígena.

Como o romance é narrado por um europeu, a nação guarani é comparada aos antigos povos bárbaros que se constituíram em nações organizadas na Europa, posteriormente em Estados, num longo processo histórico que atravessou a Antiguidade, a Idade Média e se consolidou nos séculos XVIII e XIX. Um tempo histórico que os guarani não tiveram para si. Os indígenas foram engolfados por um processo civilizatório no qual eram os sócios menores e, durante a Guerra do Paraguai, estavam envolvidos numa luta de Estados Nacionais em formação, todos de matriz europeia (Paraguai, Brasil, Argentina), e para esse banquete os indígenas não eram convidados – a não ser como bucha de canhão.
Muito melancólico esse romance de Murilo Carvalho e muito atual também, na medida em que as lutas indígenas se renovaram nos últimos vinte anos, tanto no Brasil como na América Latina. Os povos indígenas procuram se recolocar na cena político-cultural e as lutas do século XIX seguramente ainda servem de material para reflexão. A Guerra do Paraguai continua sendo um depositário de grandes histórias – histórias importantes na nossa formação social – e às vezes estranho que poucos ficcionistas se aventurem a revive-la.

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