A Bíblia é a
narrativa central da nossa civilização. Isto é, se entendemos que a nossa
civilização é construída tendo como referência básica a tradição
judaico-cristã, não há como escapar das histórias bíblicas, sejam verdadeiras
ou não. Suas histórias estão no eixo do nosso imaginário e tanto as aprendemos
nas cerimônias religiosas, quanto na escola, nas ruas, nos museus e,
especialmente, no cinema. Entre essas histórias, sem dúvida, está a de Maria
Madalena, figura citada nos quatro evangelhos de forma sucinta e que gerou diversas
interpretações e lendas.
No filme A
Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, ela é a adúltera que vai ser
apedrejada e que Jesus salva da morte. Uma cena belíssima de uma linda mulher
jogada no chão, já estropiada, sangrando, e que ergue os olhos, agradecida, ao
seu Salvador. O filme recria a passagem do Evangelho de João 8, 1-11, no qual uma adúltera é apresentada a
Cristo para que ele se pronuncie a respeito da Lei de Moisés (que ordena o
apedrejamento de tais mulheres). Jesus enfrenta o questionamento lançando um
desafio – “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma
pedra!” – e livra a moça do castigo. O evangelista não nomeia a mulher, mas
alguns exegetas medievais a identificaram como Madalena e a interpretação colou,
se difundiu e chegou até o cinema do século XXI.
Outro trecho dos Evangelhos que serviu para
identificar Madalena como pecadora é a que trata da mulher que lava os pés de
Cristo na casa de um fariseu (Lucas 7, 36-50). Nesse episódio, uma pecadora
anônima banha os pés de Jesus com suas lágrimas, depois seca-os com seus
cabelos, cobre-os de beijos e os unge com perfume. Novamente o evangelista não
nomeia a mulher e alguns estudiosos a identificaram como Madalena. Uma mulher
que “entregou-se completamente aos prazeres carnais” e depois se arrependeu, conforme
está na Legenda Áurea, um dos mais famosos
livros sobre santos, escrito por Jacopo de Varazze no século XIII.
Na Contra-Reforma essa versão da trajetória de
Madalena foi reforçada e serviu como instrumento de propaganda católica para
construir o modelo da mulher arrependida, que passa pela confissão, a
penitência e alcança a salvação. É dessa maneira que ela ganha a tradição
popular e, até hoje, quando pesquisadores vão à campo, recolhem depoimento de
homens e mulheres de todas os níveis sociais que repetem a versão da adúltera e
da pecadora.
Mas o assunto nunca deixou de ser polêmico entre os
estudiosos e, durante o Concílio Vaticano II (na década de 1960), a Igreja acatou
e consolidou um “novo entendimento” a respeito de Madalena: a de que ela não é
a adúltera que Cristo salvou do apedrejamento nem a pecadora que lavou os seus
pés. A Igreja resgatou o que se encontra no texto dos Evangelhos e passou a
afirmar que ela era, isso sim, uma das integrantes da “companhia feminina de Jesus”
(expressão usada por Lucas para designar as mulheres que acompanhavam Cristo e
os doze apóstolos) e, principalmente, a primeira pessoa a ter contato com o
Cristo ressuscitado (a "apóstola dos apóstolos", segundo Tomás de Aquino).
Em junho de 2016, o Papa Francisco elevou “a memória
de Madalena [...] ao grau de festa pela Congregação para o Culto” (colocando-a
no mesmo patamar dos doze apóstolos consagrados pela história eclesiástica) e
deste então se tornou mais visível o esforço da Igreja Católica em restabelecer
a história de Maria Madalena nos termos em que ela foi descrita pelos
evangelistas. Junto com isso, também se revelou o polêmico esforço de
mudar o papel das mulheres “na missão de Cristo e na Igreja”. No entanto, na
tradição popular, permanece a versão criada no medievo e reafirmada na Contra-Reforma da pecadora arrependida.
Agora, Hollywood se engaja nesse projeto do Vaticano e
produz o filme Maria Madalena,
lançado no Brasil em março desse ano. O filme tem roteiro de duas mulheres (Helen
Edmundson e Philippa Goslett), a direção de Garth Davis (o mesmo de Lion: uma jornada para casa, premiado no
Oscar de 2017), e produção da Universal Pictures.
Madalena é interpretada como uma moça frágil, porém
decidida, que sabe se impor diante da sua família. O pai e os irmãos querem que
ela case, escolhem um noivo para ela, mas a moça tem outras aspirações e os
enfrenta. Frágil e delicada, ela tem inquietações religiosas e prefere seguir
um profeta (Jesus) que anda pela região. Castamente, se integra aos seguidores de
Jesus e, no filme (ao contrário do que é indicado nos Evangelhos), é a única
mulher no grupo.
É significativa a cena em que ela aparece puxando uma
rede de pesca, pois dessa maneira ela se assemelha aos apóstolos consagrados,
os “pescadores de homens”, conforme Jesus os chamou (Mateus 4, 19). Cena
simbólica da luta das feministas católicas por um maior protagonismo na estrutura
de poder eclesiástico.
Maria Madalena, interpretada por Rooney Mara, no filme Maria Madalena (2018). |
Sem dúvida, um filme importante no contexto das
tentativas de renovação do papel da mulher nos quadros da Igreja Católica. Mas
não me parece que tenha tido grande repercussão e nem empolgado a pequena
parcela da população que frequenta as salas de cinemas. Uma avaliação, claro, a
conferir. Na sessão em que fui assistir ao filme, aqui em Santa Maria, havia
dez pessoas na plateia e não senti entusiasmo – nem em mim nem nos demais
espectadores. A Madalena dos filmes de Mel Gibson, de Martin Scorsese, e do
romance de José Saramago (O Evangelho
segundo Jesus Cristo) ainda são mais empolgantes.
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