domingo, 18 de fevereiro de 2018

Conversas com minha mãe


Talvez fosse em 2001, quem sabe em 2002, estávamos almoçando num dos restaurantes da PUC de Porto Alegre – minha mãe, minha mulher e eu – e cruzamos com Marshall Berman. Ele vinha caminhando ao lado do bufê fartamente servido (era o restaurante mais sofisticado da PUC) com um prato balançando na mão, vestido com exagerada displicência, os cabelos despenteados, e minha mãe o olhou de cima a baixo. Depois, na mesa, comentou:

– É esse escritor que vocês gostam tanto? Na certa ele escreve melhor do que se veste.

Nós rimos e concordamos com ela. O famoso ensaísta norte-americano realmente compunha uma figura estranhíssima naquele ambiente, mas dissemos que valia a pena ler Tudo que é sólido se desmancha no ar. Minha mãe, no entanto, não se interessou. Ela estava na faixa dos setenta anos, tinha descoberto Machado de Assis, um autor que ela passara a vida inteira achando chato e que, de repente, tornara-se uma das suas leituras prediletas (junto com Eça de Queirós, um amor antigo).

Agora que minha mãe faleceu, meus irmãos e eu dividimos os seus livros (alguns dos tantos livros que ela leu ao longo da vida) e descobri entre eles um pequeno volume de contos de Machado, no qual ela anotou que eu a presenteei depois de um almoço num shopping de Porto Alegre, em 2012.

Mas não lembro o almoço. Não sei se comemos camarão e bebemos chope (um dos nossos cardápios prediletos) ou se comemos galeto e bebemos vinho... Era um shopping onde costumávamos passear, almoçar e, inevitavelmente, bater ponto na sua livraria.

A mãe lia regularmente e gostava de Machado, Eça, Isabel Allende e tantos outros - os autores da Bíblia inclusive. Lia e relia os contos e romances machadianos (preferia os romances), e muitas vezes eles nos serviam de porta de entrada para pensar a “natureza humana” (um termo que ela empregava), os segredos e as sombras que existem em todos nós.

Então eu olho os livros que me couberam na partilha e sinto que continuo vivendo como se minha mãe estivesse comigo... Como se ouvisse ela comentar os trajes de Marshall Berman ou as possíveis artimanhas da machadiana Capitu:

– As mulheres são muito ardilosas, meu filho, te cuida.
Folheio os livros que ela leu com tanta atenção – obras de Machado, Eça, Veríssimo, Josué Guimarães, Assis Brasil, Lígia Fagundes Telles, tantos – e é como se ainda continuássemos conversando, conferindo impressões de leitura, falando da família, de nós mesmos, tecendo essa teia de afetos entre mãe e filho que tanto me alicerça, me fundamenta, e da qual sou eternamente grato.

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