Em fevereiro do ano passado, visitei a cidade de Assis
(Itália) com meus colegas do Campus Magnolie (escola de língua italiana para
estrangeiros). Estávamos hospedados em Castelraimondo (distante pouco mais de
70 km da cidade natal de São Francisco), tivemos aula pela manhã e viajamos a
tarde. Visita guiada numa tarde de sol e muito frio. O professor falava em
italiano, pausadamente, e dava para entender. Um passeio inesquecível, desses
que muito professor de História sonha a vida inteira.
São Francisco de Assis é um dos maiores santos da
Cristandade e a sua vida e prática espiritual são um marco na história da
sensibilidade cristã. Como aponta Armindo Trevisan, seu amor à Natureza e sua
devoção à Paixão de Cristo acentuaram uma revolução que estava em curso durante
a vida do santo: a da humanização da teologia e da espiritualidade cristãs. Uma
“revolução copernicana às avessas”, acentua Trevisan, que obrigava “o sol da
reflexão a girar em torno do homem, isto é, da humanidade de Cristo,
consequentemente, da humanidade sexuada de sua mãe”. Uma revolução desencadeada
pelos santos Anselmo e Bernardo, no século XII, e que São Francisco viveu,
poetizou e difundiu.
Entrei na cidade de Assis com a lembrança dessas
leituras e, enquanto o meu corpo se movimentava por uma cidade do século XXI (a
atual cidade de Assis, preservada/restaurada nos seus traços medievais), os
olhos e a imaginação buscavam os sinais do passado. Visitei as basílicas de
Santa Clara e de São Francisco nessa “vibe”, à procura de uma possível sintonia
com a poderosa tradição inaugurada por esses santos e reinventada pela Igreja e
pelos devotos nos últimos 800 anos.
Não se alcança isso numa tarde, é verdade, mas o que
se vê, ouve e sente é material para que o passeio continue muito e muito tempo
depois.
E foi isso que aconteceu semanas atrás: catei na
estante um pequeno livro que comprei na Libreria Internazionnale Francescana e
retomei o ponto mais alto desse passeio: a visita ao interior da igreja
superior da Basílica de São Francisco. Ali se encontram as 28 pinturas murais
de Giotto, intituladas “A vida de São Francisco” e realizadas entre 1296 e
1299. São 28 murais (ou afrescos) que o pequeno livro – Giotto: a lenda franciscana na Basílica de Assis – reproduz e comenta, tanto nos seus
aspectos artísticos quanto (principalmente) nos seus aspectos religiosos. Um
livro precioso para entender a enorme riqueza desses murais. Obra da juventude
de Giotto e marca inicial do processo de ruptura com o convencionalismo
bizantino e a inauguração de uma “representação mais vívida da vida”. Aos meus
alunos, eu apontava Giotto como pré-renascentista, um artista que ensaiou os
primeiros passos de uma nova representação da figura humana, que se configurou no
Renascimento Cultural.
Naquela tarde (fevereiro do ano passado), caminhei
pela igreja superior da Basílica de São Francisco e parei diante de cada mural.
Vistos um a um, em silêncio, foi possível uma sintonia com o material religioso
dos murais e a vivência de uma emoção crescente. Quando cheguei ao mural da
cena do Monte Alverne – mural nº. 19, no qual o santo tem a visão de Cristo sob
a aparência de um Serafim Crucificado e recebe os estigmas da Cruz nas mãos,
nos pés e no lado direito das costelas – era como se eu tivesse percorrido um enorme
caminho e encontrado uma das matrizes da minha vida. Afinal, guri da década de
1960, tive minha fase de sonhar com os santos e querer imitar suas vidas de
martírio. Coisas de quem se criou à sombra da Igreja Católica...
Muito bom poder retornar a isso (à matriz católica) aos
62 anos de idade, e também sintonizar com o menino e adolescente que eu fui. Se
perdi a fé religiosa, ganhei humanidade. E ganhei-a nos marcos da tradição
cristã e dos seus artistas, nas sendas abertas por São Francisco e Giotto, um
de seus artistas inspirados.
Naquela noite, quando voltei com meus colegas ao
Campus Magnolie, não lembro que vinho bebi (provavelmente um primitivo), mas
com o copo entre as mãos sei que rezei como São Francisco: “Irmão corpo,
precisas de uma porção justa de alimento e bebida. Irmão corpo, que bem
precisas de todo apreço”.
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