sábado, 20 de janeiro de 2018

Catherine Millet e o sexo selvagem

Catherine Millet foi uma das signatárias do manifesto das feministas francesas realizado em protesto ao feminismo norte-americano, especialmente aquele protagonizado pelas atrizes vestidas de preto na última cerimônia do Globo de Ouro, em janeiro desse ano. Catherine Millet, 69 anos, é uma sofisticada crítica de arte e também romancista. Em seu romance autobiográfico, A vida sexual de Catherine M. (Ediouro, 2002, 216 p.), sua personagem principal encarna de forma contundente essa mulher que o manifesto das francesas delineia: uma mulher que não precisa de proteção, que entende o jogo sexual como selvagem e agressivo, não se melindra com isso e vai à luta.


No manifesto das francesas, o feminismo norte-americano é visto como “uma onda purificadora puritana”, que retoma o entendimento tradicional da mulher como “mera criança” que necessita de proteção contra as investidas inconvenientes dos homens. Para as francesas, “as mulheres estão suficientemente conscientes de que o desejo sexual é por natureza selvagem e agressivo”, sabem distinguir uma investida desastrada de um ataque sexual e são capazes de se defender. Ou, pelo menos, as francesas apostam nisso. Em certo sentido, são otimistas.
Quando li os termos do manifesto, lembrei do romance autobiográfico de Catherine Millet e procurei-o na estante. Publicado em 2001, na França, o livro logo tornou-se um sucesso de venda e foi traduzido em vários países, inclusive no Brasil. Na época, A vida sexual de Catherine M. foi saudado como o relato sincero, surpreendente pela originalidade, de uma mulher sobre a inserção feminina no mundo dos jogos eróticos. Uma inserção nos moldes da tradição libertina: a da busca da completa liberdade sexual, sem nenhum sentimentalismo, sem nenhuma amarra moral. Uma inserção politicamente incorreta, cujos principais objetivos são o prazer e a liberdade. Um prazer conquistado solitariamente, a dois, em grupo, com o sexo oposto, com o mesmo sexo, com quem for e em qualquer circunstância. Principalmente em qualquer lugar e momento, pois isso torna “mais abrangente” o sentimento de liberdade. Tudo vale para a conquista “do Graal sexual”, endossa a personagem central do romance, Catherine M.
 Aparentemente um romance pornográfico, devido às descrições de práticas sexuais de forma crua, mas somente o necessário para dar um sabor bandalho à narrativa libertina. Logo fica claro que a personagem Catherine M. está refletindo sobre a sua trajetória sexual, sua personalidade sexual, sua inserção peculiar no universo dos jogos eróticos – e não necessária e exclusivamente tentando excitar o leitor, como é o caso do texto pornográfico. Uma narrativa que tem muitos pontos em comum com a vida da autora, mas que, nem por isso, deixa de ser ficcional. Muitas vezes provocação pura, como o reconhecimento da selvageria e agressão que o desejo sexual pode alcançar e o gozo completo com essas dimensões da sexualidade. Provocação para a maioria dos nós, homens ou mulheres, que (pelo menos da boca pra fora) quer se comportar de forma politicamente correta.
Não sei até que ponto Catherine Millet, a autora, endossa as posições libertinas da sua personagem. Aparentemente, pelas declarações da autora na imprensa, há muita proximidade de ideias e Catherine Millet referenda muitas das provocações que se encontra no romance. Mas as “bandeiras de luta” de Catherine M. (o do completo usufruto do sexo e da liberdade) não se harmonizam com qualquer feminismo que se constitui em movimento social e busca um novo regramento para as relações entre os sexos (muito menos com o feminismo das atrizes vestidas de preto). Nem a personagem se propõe a isso. Nem a autora. Apenas se aproximam, se assemelham, na defesa do prazer sexual e da liberdade.
Catherine M. é personagem de um romance libertino escrito na primeira pessoa e narra de forma reflexiva (ensaística, como indica Vargas Llosa) sua inserção individual no mundo dos jogos eróticos. Uma personagem – construída como projeção da autora – que encena a fantasia e a realidade vividas por sua criadora. Uma personagem feminina deliciosamente livre e independente, e, por isso mesmo, também assustadora. 
Se lemos o romance de Catherine Millet como representativa da nova configuração do feminino, as mulheres – ou pelo menos algumas mulheres – não precisam de proteção em relação às investidas masculinas, mesmo que sejam selvagens e agressivas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário