Catherine Millet foi uma das signatárias do manifesto
das feministas francesas realizado em protesto ao feminismo norte-americano, especialmente aquele protagonizado pelas
atrizes vestidas de preto na última cerimônia do Globo de Ouro, em janeiro desse
ano. Catherine Millet, 69 anos, é uma sofisticada crítica de arte e também
romancista. Em seu romance autobiográfico, A vida sexual de Catherine M. (Ediouro, 2002, 216 p.), sua personagem principal encarna de forma
contundente essa mulher que o manifesto das francesas delineia: uma mulher que
não precisa de proteção, que entende o jogo sexual como selvagem e agressivo,
não se melindra com isso e vai à luta.
No manifesto das francesas, o feminismo
norte-americano é visto como “uma onda purificadora puritana”, que retoma o
entendimento tradicional da mulher como “mera criança” que necessita de proteção contra as
investidas inconvenientes dos homens. Para as francesas, “as mulheres estão
suficientemente conscientes de que o desejo sexual é por natureza selvagem e
agressivo”, sabem distinguir uma investida desastrada de um ataque sexual e são
capazes de se defender. Ou, pelo menos, as francesas apostam nisso. Em certo
sentido, são otimistas.
Quando li os termos do manifesto, lembrei do romance autobiográfico
de Catherine Millet e procurei-o na estante. Publicado em 2001, na França, o
livro logo tornou-se um sucesso de venda e foi traduzido em vários países,
inclusive no Brasil. Na época, A vida sexual de Catherine M. foi saudado como
o relato sincero, surpreendente pela originalidade, de uma mulher sobre a inserção
feminina no mundo dos jogos eróticos. Uma inserção nos moldes da tradição
libertina: a da busca da completa liberdade sexual, sem nenhum sentimentalismo,
sem nenhuma amarra moral. Uma inserção politicamente incorreta, cujos
principais objetivos são o prazer e a liberdade. Um prazer conquistado
solitariamente, a dois, em grupo, com o sexo oposto, com o mesmo sexo, com quem
for e em qualquer circunstância. Principalmente em qualquer lugar e momento, pois
isso torna “mais abrangente” o sentimento de liberdade. Tudo vale para a
conquista “do Graal sexual”, endossa a personagem central do romance, Catherine
M.
Aparentemente
um romance pornográfico, devido às descrições de práticas sexuais de forma crua, mas somente
o necessário para dar um sabor bandalho à narrativa libertina. Logo fica claro que a
personagem Catherine M. está refletindo sobre a sua trajetória sexual, sua
personalidade sexual, sua inserção peculiar no universo dos jogos eróticos – e
não necessária e exclusivamente tentando excitar o leitor, como é o caso do texto
pornográfico. Uma narrativa que tem muitos pontos em comum com a vida da
autora, mas que, nem por isso, deixa de ser ficcional. Muitas vezes provocação
pura, como o reconhecimento da selvageria e agressão que o desejo sexual pode
alcançar e o gozo completo com essas dimensões da sexualidade. Provocação para
a maioria dos nós, homens ou mulheres, que (pelo menos da boca pra fora) quer
se comportar de forma politicamente correta.
Não sei até que ponto Catherine Millet, a autora,
endossa as posições libertinas da sua personagem. Aparentemente, pelas
declarações da autora na imprensa, há muita proximidade de ideias e Catherine
Millet referenda muitas das provocações que se encontra no romance. Mas as “bandeiras de luta” de Catherine M. (o
do completo usufruto do sexo e da liberdade) não se harmonizam com qualquer
feminismo que se constitui em movimento social e busca um novo regramento para
as relações entre os sexos (muito menos com o feminismo das atrizes vestidas de
preto). Nem a personagem se propõe a isso. Nem a autora. Apenas se aproximam, se assemelham, na defesa do prazer sexual e da liberdade.
Catherine M. é personagem de um romance libertino escrito na primeira pessoa e narra de forma reflexiva (ensaística, como indica Vargas Llosa) sua inserção individual no mundo dos jogos eróticos. Uma
personagem – construída como projeção da autora – que encena a
fantasia e a realidade vividas por sua criadora. Uma personagem feminina deliciosamente
livre e independente, e, por isso mesmo, também assustadora.
Se lemos o romance de Catherine Millet como representativa da nova configuração do feminino, as mulheres –
ou pelo menos algumas mulheres – não precisam de proteção em relação às investidas
masculinas, mesmo que sejam selvagens e agressivas.
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