terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Canção para um dente partido

       Aconteceu durante as manifestações estudantis em 1977, em Porto Alegre. Os estudantes planejaram ocupar a Praça Raul Pilla, para protestar contra a ditadura, e tomaram a Avenida João Pessoa. A Polícia de Choque fechou a rua, impediu o avanço da passeata e, de repente, avançou contra os estudantes. A gurizada correu para dentro do campus universitário. Alguns entraram pelo portão da Faculdade de Economia e outros pelo portão da Faculdade de Direito. Uma colega escorregou no chão molhado do pátio do Direito, caiu, bateu com o rosto e lascou um dente.
Houve estudantes que levaram cacetadas, mas não recordo se alguém foi preso. Só lembro da minha colega que se estatelou no chão sem que nenhum policial a tivesse derrubado. Lembro por causa do dente quebrado e da trabalheira que ela teve para consertar a boca. A trabalheira e o preço do serviço. Trabalho odontológico nunca foi barato.
O reitor da UFRGS negociara com o comando da Brigada Militar que a polícia não entraria no campus e avisou às lideranças estudantis. “Dentro do campus a integridade física de vocês está garantida”, ele falou, “lá fora, na rua, não posso assegurar coisa alguma”. Por isso os estudantes correram para dentro da Universidade. A gurizada atravessou os portões e ficou do outro lado das grandes, gritando “Abaixo a repressão” e outras palavras de ordem da época. Na calçada, encarando os estudantes, ficaram os policiais com capacetes, máscaras contra gás, escudos e cacetetes.
Eu não estava naquela manifestação política e soube do caso da minha colega dias depois, no bar do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), tomando um cafezinho. Naquela época, eu tivera a minha primeira inflamação na íris – um caso que iria se repetir ao longo dos anos, até hoje – e o oftalmologista dissera para ficar de resguardo. “Protege teu olho”, ele falou, “a gente nunca sabe o que pode acontecer”.
Mas não foi por causa da indicação do oftalmologista que deixei de ir à manifestação. Achei que ela não iria acontecer, isto sim. Ao longo daquele ano houvera diversas tentativas de colocar “o movimento na rua” e todas fracassaram. Naquele dia, porém, deu certo.
Levei um susto quando soube o que ocorrera com minha colega e imaginei o que teria acontecido se eu tivesse levado um tombo e batido com a cabeça... Arrepiei. Teria afetado os olhos? Contribuído para alguma sequela na visão ou coisa assim? Não sei.
Ônus desse tipo – sequelas físicas e emocionais – fazem parte do jogo político, aprendi com o tempo. E aprendi também que a vida é muito frágil. Um deslize no momento errado... e dançamos. Um deslize que pode acontecer numa manifestação política, no trânsito das ruas e estradas ou numa boate construída e fiscalizada de modos inadequados.


Obs.: A manifestação estudantil a que me referi ocorreu no dia 23 de agosto de 1977, no centro de Porto Alegre. “Foi a primeira vez que o movimento estudantil assumiu em todo o pais o Abaixo a Ditadura”, afirmou uma liderança da época, Bete Portugal. O jornal Zero Hora publicou boas fotos a respeito e algumas delas foram reproduzidas no livro de Ivanir Bortot & Rafael Guimarães, Abaixo a repressão: movimento estudantil e as liberdades democráticas (Porto Alegre: Libretos, 2008).

Um comentário: