A
moça que sorri para mim no restaurante é uma das sobreviventes da Boate Kiss.
Logo depois da catástrofe, ela me contou que não sabe como escapou. Ela e o
namorado saíram correndo, tropeçaram e se estatelaram no chão. “Alguém caiu por
cima de nós”, ela disse. “Eu desmaiei e me arrastaram lá de dentro. Não sei
como.”
Quando ela se deu conta, estava sentada no asfalto,
com os joelhos esfolados e os pulsos vermelhos. Nos pulsos, havia marcas de
mãos que a haviam segurado com força e a arrastado. Ela e o namorado foram salvos
dessa maneira.
A moça que sorri para mim, no restaurante a quilo que
freqüento, é uma das sobreviventes. Às vezes conversamos. Há um ano atrás, eu
li o seu trabalho de conclusão de curso e participei da banca de avaliação. Às
vezes conversamos sobre o tempo, a vida e o futuro.
Apesar dos pesadelos, crises de choro, cuidados
redobrados com a saúde, medicação, mais os efeitos colaterais da medicação, ela
continua sorrindo. Nenhuma nuvem parece encobrir os seus olhos.
Eu e ela nos cruzamos semanalmente e nos
cumprimentamos. No restaurante, cada um de nós se serve de arroz, feijão, carne
de gado, frango ou peixe, e não esquecemos as verduras e legumes. Às vezes
aponto para ela que tem bife de fígado. “Bife de fígado é muito importante para
a saúde”, eu digo, “minha mãe sempre diz isso.”
Ela ri e imagino que a mãe dela também repete esse
mantra. Eu vejo a moça caminhar por entre as mesas, segurando o seu prato, e penso
que nunca entenderei o que aconteceu na Boate Kiss.
Dias antes do episódio, minha filha me contou que a boate
era uma das mais prestigiadas da cidade, para festas universitárias. Casa
noturna badalada. Festas muito concorridas, com superlotação e gente na fila,
na calçada, esperando a hora de entrar.
Festas que exigiam maior atenção com a roupa, observou
uma aluna, acentuando que não era como ir a Boate do DCE, “onde não se repara tanto
no que as pessoas estão vestindo”.
Volta e meia eu passava pela frente da boate – sempre
durante o dia – e não imaginava que aquilo fosse uma arapuca com uma única
saída. E com material de vedação acústica – a malfada espuma – completamente
inadequado e fora do padrão indicado. Uma espuma que propaga o fogo com rapidez
e, pior de tudo, que produz uma fumaça letal.
Nunca imaginei que uma construção com tantos erros
atravessasse incólume o coração de uma cidade com autoridades responsáveis!
A moça que sorri para mim, no restaurante a quilo, é
uma das sobreviventes. Às vezes falamos do tempo, da vida e nunca das normas e
regulamentos que regem a vida de uma cidade. Muito menos comentamos a respeito
do processo judiciário em curso, que visa identificar o grau de
responsabilidade de alguns dos atores envolvidos no caso, aqueles que caíram
nas malhas da Justiça.
Sorrimos e nos servimos de arroz, feijão, carne, e não
esquecemos legumes e verduras. Para a sobrevivência de um corpo são necessários
mil e um cuidados. Um descuido e lá vem uma carência disso ou daquilo, de
vitamina B, C ou ferro.
“Por isso o bife de fígado, não é mesmo, minha amiga?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário