Cronista bom consegue um ângulo novo a respeito das
coisas e surpreende. Por exemplo: vai numa cidade e vive situações que passaram
despercebidas aos outros, ou, se não foram despercebidas, não ganharam
configuração em texto escrito.
Tive essa impressão ao ler o livro de Humberto Werneck,
O espalhador de passarinhos & outras
crônicas (Sabará, Ed. Dubolsinho, 2009), em especial nos dois textos onde
ele comenta sua viagem ao Santuário de Fátima, em Portugal. O cronista andou
por lá, recentemente, e não gostou. Achou a cidade sem atrativos, sem “um único
motel, um solitário inferninho”. Sem nenhum lugar para pecar. Uma chatice.
Não se comoveu com os romeiros se arrastando de
joelhos em direção à basílica (a maioria usando joelheiras) nem com a
quantidade de velas queimando num lugar estabelecido pelos organizadores..
O cronista, inclusive, achou esquisito o comércio de
ex-votos para pagar promessa ou agradecer graça alcançada – o comércio de
partes do corpo humano feitas em
cera. E reproduziu um dialogo cômico entre um romeiro e um
comerciante:
“– Quanto vale o seio?
– Três euros.
– Mas a doença foi num só...”
Uma impressão muito diferente da que eu tive, quando
visitei o Santuário. Entrei com jeito de “professor de História, interessado nas
coisas do mundo do sagrado”, e sai comovido até o fundo da alma. Comprei
imagens de Nossa Senhora, assisti missa, visitei os túmulos e as casas dos
pastores (os pastorzinhos que disseram ter visto Nossa Senhora) e me emocionei com
tudo, Os cantos litúrgicos, a música do órgão, os túmulos, os romeiros, as
dimensões da basílica, a organização do espaço e das cerimônias, tudo me pegou
e produziu forte emoção.
Uma cidade sem pecado, disse o cronista, não sem
alguma razão. Mas, provavelmente, uma cidade com todos os pecados do mundo, ali
expostos e exibidos para a exacerbação das nossas dores. O resultado de um
investimento da Igreja e do Estado (do governo de Salazar) para a criação de um
pólo de resistência à modernidade capitalista, liberal, e também comunista. Um
lugar que ultrapassou esse projeto político-religioso (ou que concretizou esse
projeto de forma eficaz), e no qual é possível vivenciar um momento especial de
religiosidade. No meu caso, a religiosidade sem muita sofisticação que trazemos
“do fundo da infância”.
Uma cidade que tem tudo para incomodar, como bem indica
o cronista.
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