sábado, 12 de janeiro de 2013

Uma cidade sem pecado


Cronista bom consegue um ângulo novo a respeito das coisas e surpreende. Por exemplo: vai numa cidade e vive situações que passaram despercebidas aos outros, ou, se não foram despercebidas, não ganharam configuração em texto escrito.
Tive essa impressão ao ler o livro de Humberto Werneck, O espalhador de passarinhos & outras crônicas (Sabará, Ed. Dubolsinho, 2009), em especial nos dois textos onde ele comenta sua viagem ao Santuário de Fátima, em Portugal. O cronista andou por lá, recentemente, e não gostou. Achou a cidade sem atrativos, sem “um único motel, um solitário inferninho”. Sem nenhum lugar para pecar. Uma chatice.
Não se comoveu com os romeiros se arrastando de joelhos em direção à basílica (a maioria usando joelheiras) nem com a quantidade de velas queimando num lugar estabelecido pelos organizadores..
O cronista, inclusive, achou esquisito o comércio de ex-votos para pagar promessa ou agradecer graça alcançada – o comércio de partes do corpo humano feitas em cera. E reproduziu um dialogo cômico entre um romeiro e um comerciante:
“– Quanto vale o seio?
– Três euros.
– Mas a doença foi num só...”
Uma impressão muito diferente da que eu tive, quando visitei o Santuário. Entrei com jeito de “professor de História, interessado nas coisas do mundo do sagrado”, e sai comovido até o fundo da alma. Comprei imagens de Nossa Senhora, assisti missa, visitei os túmulos e as casas dos pastores (os pastorzinhos que disseram ter visto Nossa Senhora) e me emocionei com tudo, Os cantos litúrgicos, a música do órgão, os túmulos, os romeiros, as dimensões da basílica, a organização do espaço e das cerimônias, tudo me pegou e produziu forte emoção.
Uma cidade sem pecado, disse o cronista, não sem alguma razão. Mas, provavelmente, uma cidade com todos os pecados do mundo, ali expostos e exibidos para a exacerbação das nossas dores. O resultado de um investimento da Igreja e do Estado (do governo de Salazar) para a criação de um pólo de resistência à modernidade capitalista, liberal, e também comunista. Um lugar que ultrapassou esse projeto político-religioso (ou que concretizou esse projeto de forma eficaz), e no qual é possível vivenciar um momento especial de religiosidade. No meu caso, a religiosidade sem muita sofisticação que trazemos “do fundo da infância”.
Uma cidade que tem tudo para incomodar, como bem indica o cronista.

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