A mãe conta que tinha empregada doméstica, faxineira e
lavadeira. Ela era professora primária, o pai trabalhava num banco, e pergunto
para ela como eles pagavam tantos empregados. “Não sei”, ela diz, e explica que
o salário que recebia permitia que renovasse o guarda-roupa dos três filhos,
sempre que mudava a estação. Os professores da escola pública não ganhavam mal
nas décadas de 1950 e 60. Mas nos 60 as coisas mudaram, ela explica.
A situação salarial dos bancários também se modificou.
Na segunda metade da década de 60, as condições da
classe média brasileira se reconfiguraram. Talvez seja assim que se deva dizer.
Crise do modelo de acumulação de capital, crise política e institucional
(resolvida por meio de golpe militar), repressão aos movimentos operário e
camponês. Aos poucos as coisas foram apertando para os setores médios também.
A mãe conta que não lembra da “repressão”. Todos na
família apoiavam a intervenção militar. O irmão dela era major e se alinhava ao
“movimento civil-militar”. Um outro tio (do lado paterno) era do PTB, fora
preso (desapareceu logo depois do golpe, apareceu meses depois num quartel e depois foi solto), mas não se falava sobre ele.
“Teu tio brizolista era da pá virada”, a mãe conta.
“Ele levou teu pai a uma reunião partidária e ele voltou enfurecido.
Nunca contou o que houve. Só falou que nunca mais voltava. Passou a detestar
política.”
Faço com minha mãe o que se chama história oral – ou,
ao menos, a coleta do seu depoimento de vida. É uma mulher que admiro – não
apenas por ser minha mãe.
De manhã cedo, acordando o marido e os filhos, andava
de um lado para o outro e não faltava coisa alguma para nós: a roupa para vestir,
o café, o leite e o pão na mesa da copa. Andando pela casa, ela cantava o Hino
Rio-Grandense ou recitava Alceu Wamosy (“Ó tu que vens cansada, ó tu que vens
de longe / Entra e sobre meu teto encontrarás pousada”).
Ríamos muito, nessas horas matutinas, vestindo as
calças brim-coringa e depois segurando a xícara com as duas mãos e sorvendo o café com leite. Às vezes, reclamávamos de alguma coisa. Se
bem que isto de reclamar não era permitido. “Vocês têm tudo” – e aqui entrava a
voz do pai –, “reclamar do quê?”
A mãe cantava, recitava e comandava. Comento que o pai dizia que ela era uma ótima administradora. Poderia comandar uma
empresa. Ela ri. Bastava a casa, a sala de aula, a merenda do grupo escolar
(ela foi merendeira por vários anos), responde.
Então a mãe olha para mim e diz que tinha uma senzala: cozinheira, faxineira, lavadeira. Que era desta maneira que ela fazia
as coisas andarem. Mas não sabe como pagavam essas mulheres todas. Afinal, o
pai era bancário e ela, uma professora primária.
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