sexta-feira, 13 de abril de 2012

O sonho do celta

O sonho do celta, o último romance de Mario Vargas Llosa, é um livro que incomoda, tanto pela temática histórica abordada quanto pela atitude do romancista. Mas termina agradando.
A narrativa é centrada num personagem verídico – Roger Casement –, um irlandês que migra criança para a Inglaterra e se torna funcionário do Império Britânico. A partir daí, o autor acompanha a trajetória do personagem nas regiões do Congo, Peru, Irlanda e Inglaterra, entre 1884 e 1916.
Apaixonado pelo continente africano, o jovem Roger Casemente acredita que as ações colonialistas – o livre-comércio e o cristianismo – são capazes de civilizar os povos. Quanto coloca os pés na África, no entanto, se decepciona. Mais tarde, na condição de embaixador britânico, realiza um minucioso inventário da barbárie promovida pelo empreendimento colonial de Leopoldo II, rei da Bélgica, no Congo.
Nos capítulos dedicados ao Congo – com explícita referência ao romance de Joseph Conrad, O coração das trevas (1901) –, temos uma espécie de ensaio investigativo a respeito do “horror”, ao qual o agente comercial Kurtz se refere. O horror produzido pelos “homens ocos” do colonialismo europeu. Um ensaio magistral! Mas onde a ficção?, fiquei me perguntando.
A ficção vai despontando das informações e reflexões históricas, na medida em que se evidencia o drama do embaixador Roger Casement: o do agente do Império Britânico que, ao conhecer as entranhas do colonialismo, se descobre irlandês e, como tal, vítima do Império. A essa ambigüidade do personagem – a do funcionário do Império que se rebela contra o imperialismo –, soma-se a sua condição de homossexual. Uma situação que também o coloca em conflito com os valores dominantes.
Assim, na medida em que a narrativa avança – quando o personagem viaja para o Peru para investigar as atrocidades de mais uma empresa colonial; quando o personagem se envolve na luta nacionalista irlandesa –, a densidade ficcional aumenta. As páginas ambientadas no Peru são provavelmente as melhores. A forma como a narrativa apresenta as ações coloniais dirigidas por naturais da América (apesar da condição inglesa da empresa) estão entrelaçadas com a trama ficcional e o resultado é excelente. Um panorama brilhante do chamado período neocolonial na América Latina!
O personagem se incomoda consigo mesmo e, ao encerrar a tarefa oficial no Peru, resolve assumir sua condição de irlandês e se engajar num outro sonho: o da Irlanda independente. E, com o mesmo ímpeto idealista que na juventude pensara o colonialismo europeu na África, ele se embrenha na ação revolucionária. O resultado é brutal.
Dessa maneira, o romance vai concretizando aquilo que é indicado na primeira metade do livro: a história feita pelos historiadores não consegue dar conta da realidade (p. 114). O que os historiadores fazem é uma “construção mais ou menos idílica, racional e coerente”. A realidade, no entanto, é crua, caótica, arbitrária, misturada de planos, acasos, intrigas, fatos fortuitos e coincidências. Quem consegue dar conta disso é o romancista e não o historiador.
Sem dúvida um romance que incomoda – não apenas pela denúncia da crueldade do colonialismo, quanto pela maneira como lida com o material histórico. Romance para provar, mais uma vez, a grandeza dos romancistas frente ao prosaico trabalho dos historiadores. Romance obrigatório, como me disse um amigo, para os que lidam profissionalmente com a história.

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