segunda-feira, 7 de abril de 2025

Adolescência

 

Assisti a minissérie “Adolescência” e fiquei impressionado com o personagem principal: o menino de 13 anos de idade que esfaqueia a coleguinha de escola. A princípio entendi que o motivo do assassinato era o fato da menina ter esnobado e humilhado o rapazinho de cabeça quente, mas logo descobri que o buraco era mais embaixo. O crime não decorreu apenas da fúria do gurizinho rejeitado, mas foi alimentada por uma subcultura extremamente machista e antifeminista de ampla circulação nas redes sociais. Uma subcultura que, mais do que a família e a escola, é o que faz a cabeça de muitos adolescentes contemporaneamente. A minissérie é ambientada no Reino Unido, mas tudo indica que pode ser ampliada para o mundo ocidental em geral (o mundo formatado pelo universo da Internet).

Eu não fazia ideia da abrangência desses “discursos de ódio” em relação às mulheres divulgado por influencers do tipo de Andrew Tate, citado na minissérie e que eu nem sabia da existência. Sou um velho de 69 anos sem muito treino nas redes sociais. Utilizo o Facebook, me atrapalho com o Instagram e não participo de fóruns de debates on-line ou coisas do gênero (apesar de manter um blog de crônicas).

Dessa maneira, como sujeito despreparado no universo alucinante da Internet, foi fundamental para eu entender a minissérie a cena apresentada no segundo episódio, no qual o policial que investiga o crime recebe uma verdadeira aula do seu filho a respeito do que rola no Instagram e faz a cabeça da meninada da escola. Isto é, o filho do policial (que estuda na mesma escola do menino assassino) explica ao pai o que é a cultura machista e antifeminista que circula fora do radar dos pais e professores. Apresenta (didaticamente) o caldo cultural que serve para o menino e seus amigos articularem as suas dificuldades de identidade e comportamento sexuais. A gurizada acredita numa bizarra crença na qual as mulheres só se interessam por 20% dos homens, deixando os outros 80% chupando o dedo, e reage violentamente em relação a isso. Uns rapazes que sentem a sua masculinidade colocada à prova e entendem que precisam enfrentar essas mulheres que os desprezam, puni-las inclusive. Mostrar valentia. Usar armas para assustar. Faca, como a que é utilizada pelo assassino, que, segundo relato do amigo que empresta a arma, seria utilizado para ameaçar e não para matar.

Cena de "Adolescência": o inspetor policial recebendo uma aula do seu filho
a respeito do que rola nas redes sociais.

Mundo cão. Os rapazes em formação, preocupados com a sua macheza (“Sou atraente ou não para as mulheres?”), alimentados pela tal teoria dos 80/20, se sentem acuados e metem os pés pelas mãos. É o que acontece com o gurizinho de 13 anos. Seu sentimento de desvalia diante da menina que o faz de “corinho” (na linguagem dos anos 60 e 70; bullying na expressão atual) se articula com a cultura machista e antifeminista e dá no que dá: uma reação violenta que resulta em assassinato. O antifeminismo legitima a raiva que ele sente e o guri nem percebe que se torna um criminoso. Só cai a ficha após meses de cadeia e a proximidade do julgamento. Demora para o menino se perceber um assassino.

Penso que nenhum espectador sai o mesmo depois de assistir à minissérie. A emancipação feminina abalou as estruturas da sociedade tradicional, está reorganizando os papéis de gênero, mas muitos de nós não imaginavam que tantos homens fossem reagir a isso de modo tão violento. É esse caldo cultural (a revolução feminista, seus desdobramentos) que abala o personagem central da minissérie, um frágil e furioso adolescente acossado pelas transformações comportamentais. Fúria e fragilidade que encontra nos “discursos de ódio” um modo de se expressar. (O terceiro episódio, o da sessão do jovem assassino com a psicóloga, evidencia a fúria do frágil adolescente. Sua pergunta final, se ela gosta ou não dele, escancara a sua carência. Uma verdadeira cena de horror psicológico.)

A minissérie só não precisava pegar tão pesado com os pais, como ocorre no último episódio. Os velhos não merecem mais essa lambada. Já nos sentimos responsáveis demais pelas angústias e descaminhos da juventude.

sábado, 5 de abril de 2025

Novela juvenil

             Quando estava na terceira série ginasial, botei na cabeça que iria ser escritor. O professor de Língua Portuguesa sugeriu a prática do diário como exercício da escrita e segui o conselho. Décadas depois, peguei o material e o utilizei como matéria-prima para uma novela juvenil, que intitulei “Jorge encontra Lilian”.

Jorge, o narrador adolescente, se interessa por uma guria chamada Lilian e vive o despertar em relação ao sexo oposto. Não rola muita coisa entre os dois, eles dançam, mal se tocam, mas acontece de tudo dentro do rapaz e ele registra essa transformação no seu diário. Um texto intimista.

No final dos anos 90 eu publicara dois paradidático pela Editora FTD (“O mundo grego”, 1996, e “Quando os holandeses invadiram o Brasil”, 1998) e aproveitei para apresentar a minha ficção. A responsável pela literatura juvenil me chamou, disse que o texto era bom, mas não vendia. O mercado editorial mudara e o leitor juvenil queria temas mais fortes, como violência urbana, consumo de drogas, gravidez indesejada, Aids e assim por diante. Lembro que voltei de São Paulo (de ônibus) lendo livros juvenis com esse tipo de pegada.

Apresentei o texto para o Walmor Santos, meu antigo colega de oficina literária na PUC/RS, e ele também não topou. Walmor vinha fazendo sucesso com a sua editora, a WS, vendendo bem literatura juvenil nas escolas do Rio Grande do Sul, e sabia das coisas. Tivemos uma conversa telefônica memorável e ele me disse que faltava tempero. O personagem precisava beijar a menina, talvez transar, ao menos tentar, e fez um monte de sugestões para apimentar o texto. Mas não acatei. Eu queria a minha novela daquele jeito antigo, intimista, e parti para a edição independente.

Organizei o livro com ajuda dos amigos e mandei imprimir mil exemplares na Gráfica Pallotti, em Santa Maria. Fui à luta. Tive o apoio de professores de Ensino Fundamental em relação à novela (em especial do Colégio Nossa Senhora de Fátima, em Santa Maria) e consegui vender por volta de 800 exemplares. O restante distribuí gratuitamente. Hoje só tenho dois exemplares. Um sucesso, considerando o fato de ser um livro independente.

"Jorge encontra Lilian", edição independente, 1998.
Capa: Renato Valderramas.

Não era o meu batismo de fogo, mas a impressão que ficou é a de ter sido a minha maior peleia literária. Como o livro era adotado nas turmas de sétima e oitava séries, muitas vezes fui às escolas conversar com os alunos. Uma leitora reclamou que “não rolava nem um beijinho entre os personagens” e eu achei essa a melhor síntese da novela. “Sim”, eu disse, “o encontro se dá sem que ocorra muito contato físico.”

Eu tinha treze/catorze anos quando escrevi aquele diário que serviu de base para a novela e não sabia o que era beijar. Ao reescrever, nos anos 1990, me deparei com a paixão platônico que vivera (conheci a menina numa quermesse de colégio, nunca falei com ela) e fiz o personagem ir além, isto é, conversar e dançar com a guria. Depois ligar para ela e convidá-la a um cinema. Ter a ousadia que não tive. E terminei por aí a minha ficção. Um livrinho muito bem-comportado. Uma novela juvenil onde não rola um beijinho.