Quando
criança, me assustava com os rompantes de fúria do meu pai. Ele perdia as
estribeiras conosco, os seus três filhos, e às vezes nos sapecava uns safanões,
algumas palmadas. A mãe era contra este tipo de pedagogia e protestava. Essas atitudes
do pai geravam desavenças tremendas entre eles, minha mãe chorava e eu me assustava
ainda mais. Na verdade, me angustiava. Senti-la atormentada pelo meu pai abria um
rombo dentro de mim. Uma ferida, me disse o psiquiatra. Compreender esta
situação, reparar essa ferida, foi tarefa de uma vida.
Meu
pai não era um homem violento. Mas era furioso e fazia um esforço enorme para
se controlar. Um homem que tinha também uma faceta amorosa e deixou isto claro na
relação com a mulher e os filhos. "Mas às vezes perco as estribeiras”, gostava de dizer. E reconhecia que a esposa o ajudava a dominar os seus
rompantes, conforme falou.
Minha
mãe, por sua vez, não era uma mulher dominada pelo marido, muito menos atormentada
por ele. Uma mulher de perfil tradicional, sim, que compreendia o marido como “cabeça
da família” (ela conhecia as epístolas de São Paulo), mas se garantia. Tinha a
sua vida, suas ideias, profissão (era professora primária) e muita determinação,
coisas que o pai admirava. “Ela daria uma ótima administradora de empresa”, ele
dizia, ao comentar o modo como ela organizava a vida doméstica.
Compreender
e aceitar meus pais creio que foi uma das tarefas da minha vida. Assim como
reparar os danos que a relação com eles desencadeou em mim.
Pois
madrugada dessas sonhei com as brigas ocorridas na infância e estranhei o
modo como elas foram lembradas... Acordei, fui até a cozinha fazer um chá e me
dei conta de que o sonho era sem aflição, sem angústia, e, sim, semelhante ao que
vivemos diante de um quadro, assistindo a um filme, lendo um livro...
Semelhante ao que eu vivi na Galeria das Tapeçarias, no Museu do Vaticano...
Naquela ocasião, eu me deparei com uma série de tapetes belíssimos, um deles denominado
“O Massacre dos Inocentes” (aquele determinado por Herodes, quando soube que o Messias
havia nascido) que me deixou encantado. Um tapete feito em Bruxelas, no século
XVI, com um equilíbrio dramático magnífico.[1]
Detalhe de "O Massacre dos Inocentes". (Museu do Vaticano) |
Sim, eu estava (estou ainda) ressignificando um episódio infantil que me marcou, pensei enquanto tomava o chá e escrevia a respeito. Não estava renegando o sofrimento que a cena de infância comporta, mas encarando-o de outra maneira. Compreendendo melhor os meus pais (como eles eram intensos nos seus sentimentos!) e inclusive o pirralho fantasioso que eu era. Compreendendo, aceitando, reparando, e me sentindo mais próximo deles.
Quando
terminei o chá, lembrei de uma professora de artes no Julinho (Colégio Júlio de
Castilhos) que um dia me falou para nunca abandonar o gosto pelas artes. “A
arte serve para muitas coisas, inclusive para a nossa vida pessoal”, ela afirmou, numa
conversa de final de aula.
Tinha
razão a professora, a emoção que “O Massacre dos Inocentes” me proporcionou...
serviu de estribo para eu melhor reorganizar as lembranças da infância. Me deu “estribeiras”,
penso agora, para realizar esta tarefa e cicatrizar uma ferida, complementando
um longo esforço de psicoterapia.
Que
bobagem dizer que a arte é inútil!
[1]
Segundo a legenda das obras: “Serie della Scuola Nuova con episodi della Vita
di Cristo da cartone della scuola di Raffaello. Bruxelas, 1524-1531 –
Bottega di Pieter Van Aelst.”
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