segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Vida de professor

 

Gilmar era professor de educação física e fomos colegas numa escola estadual no Bairro Harmonia (na divisa com o Bairro Mathias Velho), em Canoas, no início da década de 1980. Ele era um jovem de menos de 30 anos, já lecionava na escola há um bom tempo e a conhecia muito bem. Me falava da direção, dos colegas, dos alunos, e também do entorno da escola, que era enorme, tinha um campo de futebol, e, lá nos fundos (por trás da tela de arame), abrigava um ponto de encontro de drogados. Um problemão. Gurizada que se injetava uma medicação comprada nas farmácias da cidade de forma clandestina e a polícia não sabia o que fazer. Essa gurizada arrebentara a tela de arame que servia de muro e às vezes andava pelo pátio causando problema. Um mundo que eu desconhecia. Certa vez reparei nos pés de uns desses drogados e eles eram deformados pelas picadas das seringas de drogas, uma imagem do Inferno de Dante. A droga também envolvia a economia da cidade e Gilmar me passava informações a respeito de como circulava o produto. Algumas farmácias faturavam com o comércio da medicação.

Pois dia desses peguei um aplicativo, comecei conversando com o motorista a respeito da enchente de 2024, comentamos a respeito da situação dramática do Bairro Mathias Velho, que literalmente submergiu com as águas, e ele me disse que teve um tio que lecionou educação física a vida inteira numa escola estadual da região. “Na Escola Affonso Charlier?”, eu perguntei. “Sim”, ele respondeu. “O Gilmar?”, eu arrisquei. E o motorista confirmou: “Sim, meu tio se chamava Gilmar”. A lembrança do antigo colega me veio como um filme e eu o revi chegando de moto na escola. As alunas mais salientes faziam um círculo em torno dele, pediam carona e às vezes ele carregava uma e outra. Uma tarde, depois da aula, uma delas propôs que fossem a um motel (ela devia ter uns 15 anos) e ele contava que chegou a dirigir em direção a um desses estabelecimentos, a guria sentada na garupa da moto, abraçando-o decididamente. Mas ele arrepiou ao chegar perto do motel e preferiu deixá-la em casa. A guria não entendeu a desistência (“deve ter pensado mal de mim”, ele me falou), mas o Gilmar achou que assim foi melhor. Eram uma tentação aquelas gurias, nós comentávamos. Volta e meia algumas se aproximavam, se insinuavam, e ele, solteiro, era um alvo aparentemente fácil. A pedofilia não era um tema muito abordado naquele tempo, a relação entre um homem maduro e uma adolescente não era vista como inadequada e/ou “estupro de vulnerável” desde que houvesse consentimento da guria, mas não era fácil encarar.

Lembrei disso, cruzando Porto Alegre e falei para o motorista. O episódio casava com a imagem que ele fazia do tio, “ele não era muito namorador”, e disse que ele casara uma única vez e a coisa não durou muito tempo. Teve uma filha que na separação perdeu para a mulher, “ela a levou para a Bahia”, e ele viveu sozinho o resto da vida. Dedicava-se inteiramente à escola e depois à vida sindical, ao Cpers, até morrer repentinamente.

Vida simples de professor estadual, mas certamente de pequenas realizações, eu pensei, lembrando a alegria com que ele reunia a gurizada no pátio da escola e coordenava as mais variadas atividades esportivas. Os alunos o adoravam e isso todos nós, seus colegas, sabiam e até invejavam.