Bolsonaro nunca escondeu a sua inclinação autoritária.
Quando ele era um simples deputado federal, medíocre quanto ao seu desempenho
na Câmara Federal, mas incisivo na sua apologia ao Regime Militar e à repressão
da esquerda em geral, eu o citava nas aulas de História da América Latina como uma
excrescência do período das ditaduras dos anos 1960, 70 e 80. Entendia que era
irreversível o processo de adesão (ou pelo menos de aceitação) das Forças
Armadas latino-americanas em relação à democracia liberal (e nisso incluído o jogo
eleitoral, a posse do candidato eleito, fosse ele quem fosse) e via Bolsonaro como
um tipo folclórico, a sombra de um passado tenebroso que jamais retornaria.
Como me enganei. Não entendia, por exemplo, que a
grande maioria das Forças Armadas brasileiras não via problema na tortura e tomou
como um ultraje as investigações da Comissão da Verdade nomeando os torturadores
do Regime Militar, executores de uma prática fundamental no combate às oposições,
em especial a esquerda armada. Não sabia que os militares ainda consideravam os
mecanismos da tortura como arma legítima para o enfrentamento dos inimigos e a sala de
tortura como uma espécie de campo de batalha no qual o inimigo pode ser combatido. Não
entendia que as técnicas bárbaras de repressão continuavam no horizonte das
Forças Armadas brasileiras.
Foi uma surpresa, então, quando os militares construíram
a candidatura Bolsonaro, a excrescência autoritária. Fato que se evidenciou
para mim com os tuítes do general Villas Bôas em abril de 2018.
Mas dizer que “se evidenciou" é um
exagero. Passei a desconfiar. Eu não conseguia acreditar que os militares
estavam almejando retornar ao núcleo do poder.
Seja como for, a partir daí, mudou minha percepção
da cena política e me assustei. Assisti a extrema-direita exercitar as suas
técnicas de militância nas redes sociais (que capacidade de atormentar um adversário!)
e fiquei com medo. Exagerando, achei que a coisa um dia podia sobrar pra mim.
Às vésperas do 7 de setembro de 2021, quando
escutei meus vizinhos comentarem “é agora, vamos calar o STF”, arrepiei. Os caras
estão pensando em insurreição, pensei, o Estado burguês não dá conta das suas demandas, eles querem mais. Mas sempre achando que estava incorrendo em fantasia. Ora, o neofascismo se consolidando na Presidência da República! Até quando surgiram os acampamentos na
frente dos quartéis, pedindo intervenção militar para impedir o Lula tomar posse, após a derrota eleitoral de Bolsonaro em outubro de 2022, desconfiei que a coisa não era pra valer. Será que regrediremos a 1964? Não
pode.
Vi meus vizinhos irem bater o ponto no acampamento
na frente do quartel da 6ª Brigada de Infantaria Blindada (na avenida Borges de
Medeiros, em Santa Maria – cidade onde, então, eu morava) e fui lá duas vezes com
a máquina fotográfica para registrar o evento. Levei a máquina dentro da
mochila, mas não tive coragem de usá-la. Achei que os manifestantes podiam me identificar como petralha e virem pra cima de mim. Não quis encarar. Uma
pena, pois esse registro faz falta.
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6ª Brigada de Infantaria Blindada (antigo 7º RI). Era nesse gramado, à direita, que estava o acampamento bolsonarista pedindo intervenção militar. Fonte: Brenner Santa Maria (2013). |
Relembro tudo isso agora porque, enquanto escrevo,
a tropa de choque dessa trama golpista está no banco dos réus e tudo indica que
será condenada: os oito líderes da tentativa golpista: o ex-presidente, cinco
oficiais altamente graduados (um da Marinha, quatro do Exército), mais dois
civis, sendo um deles ex-diretor da ABIN. Pela primeira vez na história da República, militares golpistas
com chances de seres presos. Um fato inédito "nunca antes visto na história brasileira".
Mesmo que venham a ser anistiado daqui a alguns
anos - como sempre foram ao longo da República - é um fato a se comemorar. Quem preza o jogo democrático liberal tem
diante de si um fato inédito. O Estado democrático burguês resiste ao ataque fascista.