quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Autoritarismo em questão

             Para quem foi professor de História e gastou horas tentando entender a tradição golpista dos militares brasileiros (assim como a sua aceitação por parcelas significativas da sociedade), esta é uma semana excepcional. Um acontecimento histórico, pois é a primeira vez que militares são julgados por atos golpistas.

Para ficarmos no chamado Período Democrático (1945-1964), os militares tramaram contra os presidentes eleitos Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart e nunca foram julgados por isso.[1] Obtiveram êxito em relação ao último, em 1964, quando o depuseram do poder (com aceitação de boa parte da sociedade civil) e construíram um domínio de 21 anos. Em 2018, voltaram ao núcleo do Governo Federal com a vitória eleitoral de Bolsonaro, armaram a sua continuidade por vias antidemocráticos (após a derrota eleitoral de 2022) e agora respondem por isso.

Acompanho no Facebook alguns amigos que migraram para a extrema-direita e leio que “não houve golpe”, pois “não houve tanques das ruas”. Bolsonaro e seus generais não lideraram nenhum assalto ao poder e os manifestantes que acamparam na frente dos quartéis pedindo “intervenção militar” e depois atacaram a Praça dos Três Poderes estavam apenas exercendo seus direitos de livre expressão e manifestação política. Nada mais fizeram do que uma livre manifestação democrática.

Procuro compreender a ginástica mental desses amigos para esconder a sua inclinação golpista e autoritária... mas não consigo. São contrários ao jogo democrático liberal (não aceitam o resultado das urnas, são contrários às decisões do Judiciário), mas não se percebem dessa maneira. Se entendo o que dizem, não se pensam golpistas, muito menos autoritários e nem de longe alinhados à tradição autoritária das Forças Armadas brasileiras. Quanto ao velho fascismo de Mussolini, então, se percebem completamente desvinculados.

Eu converso com uma colega (na faixa dos 70 anos) e ela revela que não torce pela condenação de Bolsonaro e seus generais. Pergunto se ela não se incomoda com a ideia de golpe de Estado tal qual foi arquitetado por Bolsonaro & sua trupe de generais e ela diz que “Lula é muito pior”. Não explica o que é esse “pior” e recordo de uma amiga (64 anos, namorada de um bolsonarista, 71) minimizando os crimes políticos de Bolsonaro. “Seria melhor que ele tivesse fugido”, ela diz, “para evitar essa confusão toda”. O namorado reúne os amigos na sua casa e passam horas discutindo “a ditadura da toga”, “a ilegalidade do julgamento”, “a falta de decência desse governo corrupto que afunda a economia do país” e “o caos que se tornará o Brasil com a condenação e prisão de Bolsonaro”.

Respeito às regras da democracia liberal é o que menos importa na cabeça dessa gente. Para esse pessoal, articulação de uma tomada do poder por meios não democráticos é apenas “uma narrativa da esquerda”. Uma conversa que me faz ter saudades da velha direita dos anos 1970, que se assumia autoritária, entendendo que esta é uma opção civilizacional, tal qual teorizava o velho fascismo. O presidente Ernesto Geisel, com seu projeto de “democracia conservadora”, não escondia isso.

“As massas populares não estão preparadas para a democracia”, me falava um tiozão, no final dos anos 1970, esgrimindo argumentos que remontavam à antiga Grécia e a Platão. Hoje, talvez ele defendesse a tentativa de golpe de janeiro de 2023 como uma alternativa pragmática para deter o avanço da esquerda, mesmo uma esquerda democrática (que chegou ao poder pela via eleitoral), pois, afinal, o que importa é o domínio das classes altas, melhor preparadas para o exercício do poder ou coisa que valha.

Seja como for, há ventos novos no ar. Consolida-se em parte da população a defesa das instituições democráticas como elas estão codificadas na Constituição de 1988 e segue o barco. Que Bolsonaro e sua trupe golpista permaneça condenada e impossibilitada de atuar no front político.

O recém lançado livro do historiador Carlos Fico, excelente estudo
sobre o autoritarismo das Forças Armadas brasileiras. Obra para ler
e se estarrecer com a sua atualidade.


[1] “Período Democrático” é como os anos de 1945 a 64 são denominados em muitos manuais de História do Brasil, como o de Bóris Fausto, publicado pela EDUSP em 1996 e ainda reeditado.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Golpistas no banco dos réus

 

Bolsonaro nunca escondeu a sua inclinação autoritária. Quando ele era um simples deputado federal, medíocre quanto ao seu desempenho na Câmara Federal, mas incisivo na sua apologia ao Regime Militar e à repressão da esquerda em geral, eu o citava nas aulas de História da América Latina como uma excrescência do período das ditaduras dos anos 1960, 70 e 80. Entendia que era irreversível o processo de adesão (ou pelo menos de aceitação) das Forças Armadas latino-americanas em relação à democracia liberal (nisso incluído o jogo eleitoral, a posse do candidato eleito, fosse ele quem fosse) e via Bolsonaro como um tipo folclórico, a sombra de um passado tenebroso que jamais retornaria.

Como me enganei. Não entendia, por exemplo, que a grande maioria das Forças Armadas brasileiras não via problema na tortura e tomou como um ultraje as investigações da Comissão da Verdade nomeando os torturadores do Regime Militar, executores de uma prática fundamental no combate às oposições, em especial a esquerda armada. Não sabia que os militares ainda consideravam os mecanismos da tortura como arma legítima para o enfrentamento dos inimigos e a sala de tortura como uma espécie de campo de batalha no qual o inimigo pode ser combatido. Não entendia que as técnicas bárbaras de repressão continuavam no horizonte das Forças Armadas brasileiras.

Foi uma surpresa, então, quando os militares construíram a candidatura Bolsonaro, a excrescência autoritária. Fato que se evidenciou para mim com os tuítes do general Villas Bôas em abril de 2018.

Mas dizer que “se evidenciou" é um exagero. Passei a desconfiar. Eu não conseguia acreditar que os militares estavam almejando retornar ao núcleo do poder.

Seja como for, a partir daí, mudou minha percepção da cena política e me assustei. Assisti a extrema-direita exercitar as suas técnicas de militância nas redes sociais (que capacidade de atormentar um adversário!) e fiquei com medo. Exagerando, achei que a coisa um dia podia sobrar pra mim.

Às vésperas do 7 de setembro de 2021, quando escutei meus vizinhos comentarem “é agora, vamos calar o STF”, arrepiei. Os caras estão pensando em insurreição, pensei, o Estado burguês não dá conta das suas demandas, eles querem mais. Mas sempre achando que estava incorrendo em fantasia. Ora, o neofascismo se consolidando na Presidência da República! Até quando surgiram os acampamentos na frente dos quartéis, pedindo intervenção militar para impedir o Lula de tomar posse, após a derrota eleitoral de Bolsonaro em outubro de 2022, desconfiei que a coisa não era pra valer. Será que regrediremos a 1964? Não pode.

Vi meus vizinhos irem bater o ponto no acampamento na frente do quartel da 6ª Brigada de Infantaria Blindada (na avenida Borges de Medeiros, em Santa Maria – cidade onde, então, eu morava) e fui lá duas vezes com a máquina fotográfica para registrar o evento. Levei a máquina dentro da mochila, mas não tive coragem de usá-la. Achei que os manifestantes podiam me identificar como petralha e virem pra cima de mim. Não quis encarar. Uma pena, pois esse registro faz falta.

6ª Brigada de Infantaria Blindada (antigo 7º RI). Era nesse gramado,
à direita, que estava o acampamento bolsonarista pedindo intervenção militar.
Fonte: Brenner Santa Maria (2013).
 

Relembro tudo isso agora porque, enquanto escrevo, a tropa de choque dessa trama golpista está no banco dos réus e tudo indica que será condenada: os oito líderes da tentativa golpista: o ex-presidente, cinco oficiais altamente graduados (um da Marinha, quatro do Exército), mais dois civis, sendo um deles ex-diretor da ABIN. Pela primeira vez na história da República, militares golpistas com chances de seres presos. Um fato inédito "nunca antes visto na história brasileira".

Mesmo que venham a ser anistiado daqui a alguns anos - como sempre foram ao longo da República - é um fato a se comemorar. Quem preza o jogo democrático liberal tem diante de si um fato inédito. O Estado democrático burguês resiste ao ataque fascista.