Os trobriandeses, habitantes do arquipélago das
Trobriand (no Oceano Pacífico, próximo à Nova Guiné), não estabeleciam nenhuma
relação entre o esperma e a concepção dos bebês. Eles acreditavam que as
crianças nasciam de um processo que hoje chamamos de partenogênese, isto é, sem
que o óvulo feminino fosse fecundado. Segundo suas crenças, os filhos entravam
pela cabeça das mulheres, encarnados num espírito chamado Waiwaia, desciam até
o ventre e, a partir daí, iniciavam a gestação. Os homens eram dispensáveis
nesse processo.
Isso é o que relata Bronislaw Malinowski, que estudou
esse povo na década de 1910 (durante a Primeira Guerra Mundial), e que tomei conhecimento nas aulas de Antropologia, quando era estudante de História. Malinowski
se propôs a entender o ponto de vista dos nativos, procurou reproduzir o seu
entendimento do mundo e a professora dava aulas apaixonadas a respeito do método criado por ele: a etnografia. Um método que pretendia um mergulho no universo
cultural dos povos analisados. Ou, ao menos, uma tentativa de aproximação e
envolvimento com as culturas encontradas fora do eixo da Civilização Ocidental.
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Malinowisk com os nativos de Tronbriand. Fonte: Wikipédia. |
Encerrada as aulas, eu saia com um colega (Aléxis
Borloz) a caminhar pela Avenida Osvaldo Aranha (o curso funcionava no Parque da
Redenção, só se transferiu para o Campus de Viamão em 1977) e divagávamos a
respeito do assunto. Os povos primitivos (“selvagens”, como muitas vezes se
falava) nos encantavam. Nós nos sentíamos atraídos por tudo que se distanciasse
da nossa civilização de matriz europeia, visto por nós como “decadente”. Além do
mais, esses povos primitivos encontrados pelos europeus ao longo dos séculos XIX
e XX (como os trobriandeses) se tornaram referência para conhecer os grupos caçadores-coletores
do Paleolítico. Funcionavam como uma espécie de guia para outras formas de
organização sociopolítica, anteriores à Grécia e Roma. Indicavam, por exemplo,
sistemas matriarcais, modelos de organização de poder nos quais as mulheres não
estavam excluídas. E crenças como essas, que omitiam a participação dos homens na gestação dos
bebês, colaboravam para estabelecer a centralidade das mulheres na organização familiar
e política.
Conversas empolgantes, ao longo da Avenida Osvaldo
Aranha, na saída da aula. Verdadeiras discussões a respeito das quais mais recordo o entusiasmo
do que qualquer outra coisa. Eu andava a ler “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir (sem concluir o último
volume), folheava “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, de
Engels, e, de forma mais sistemática, estudava as abordagens de Gordon Childe
(autor obrigatório nas disciplinas de Pré-história e Antiguidade) a
respeito das revoluções Neolítica, Urbana e surgimento das Civilizações. Misturava
isso com Malinoswski (sem ler “Os Argonautas do Pacífico” do início ao fim, naquela
época recém traduzido para o português) e falava, discutia, polemizava com meu
amigo.
Os homens demoraram a compreender que o sêmen que
eles ejaculavam durante a relação sexual tinha papel na gestação e isso teve
consequência na organização social. Eles só descobriram a sua função quando passaram
a domesticar os animais (durante a Revolução Neolítica), observá-los em
cativeiro e se dar conta de que, se não acontecesse o acasalamento, nada de
surgir novas ovelhas, novos cabritos e bezerros. Uma observação que
contribuiu para reorganizar a estrutura de poder nas sociedades de agricultores
que então construíam aldeias, cidades, estabeleciam distinções sociais e
desigualdades. Ao mesmo tempo que isso ocorria os homens foram se impondo perante as mulheres, subordinando-as,
tornando-as inferiores a eles, e “se achando”. Aos poucos, substituindo o matriarcado
pelo patriarcalismo...
Conversa que não tinha fim entre os jovens
estudantes que éramos. Até Érico Veríssimo entrava em pauta, por meio da
crítica de Floriano Cambará, personagem de “O tempo e o vento”, a respeito da
sociedade machista do Rio Grande do Sul. Uma paixão que compartilhávamos, isto
é, o gosto pela obra de Veríssimo.
No início dos anos 80, o meu amigo defendeu
dissertação no Mestrado de Antropologia, na UFRGS, sobre a Contracultura em
Porto Alegre (os malucos, os comportamentos desviantes). Eu tentei ingresso no
mesmo curso, não fui classificado e encarei o Mestrado em Letras, na PUC,
defendendo dissertação sobre o Grupo Quixote, um grupo literário porto-alegrense. Caminhos diferentes, mas que, de alguma maneira, tiveram origem nos
trobriandeses, nas suas crenças sobre a gestação de bebês, as diferentes formas
de se inventar a vida. Caminhos que fomos criando, enquanto batíamos pernas e
conversávamos pela Avenida Osvaldo Aranha.
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