Meu território infantil era a Zona do Porto, em
Pelotas, entre a Igreja do Sagrado Coração de Jesus e o porto propriamente. A lavadeira
era uma negra retinta, que vinha buscar a roupa em casa e a levava feito trouxa
em cima da cabeça, andando duas quadras adiante, até onde morava. Às vezes eu saia atrás dela para observá-la equilibrando aquele enorme volume branco (a roupa
suja era sempre envolta em lençol branco, como eram todos os lençóis da minha
infância) e a cena era fabulosa aos meus olhos de menino.
Uma vez o pai contratou um pintor para reforma interna
da nossa casa (que era alugada, não era nossa) e ele era um senhor negro muito sorridente,
que trabalhava cantarolando e me pedia para colocar na eletrola o “Samba do Teleco
Teco”. Do samba eu não lembro coisa alguma, mas sim a alegria daquele pintor
que cantarolava com um pincel ou brocha na mão, em cima da escada, e às vezes contava
coisas engraçadas para o menino que ficava ao redor.
Recordo essas cenas porque os negros que circulavam
no meu espaço social eram assim: lavadeiras, empregadas domésticas, pintores de
parede e estivadores – estes últimos ainda comuns no porto, especialmente nos
armazéns da zona portuária. Eram homens negros os trabalhadores que descarregavam
os grandes fardos de lã para um depósito próximo ao porto, num caminho que
volta e meia eu fazia. “Espetáculo” que eu parava na calçada para assistir.
Pelotas foi um dos maiores centros de escravos africanos
no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX, e isso deixou marcas na cidade. Um
dia fui a um museu com o pai, vi os instrumentos de ferro utilizados para
aguilhoar os escravos (colares, correntes, algemas e cadeados) e fiquei admirado.
O pai explicou que era assim no passado, que o modo de tratar aqueles
trabalhadores era duro e selvagem, e levei anos para entender esse passado
sombrio e o quanto ele deitou raízes e ajuda a explicar a enorme diferenciação
social entre negros e brancos que eu via.
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"Mãe preta amamentando menino branco" (1988), de Judith Bacci. Acervo do Museu Leopoldo Gotuzzo. |
No esplendoroso Clube Comercial que conheci nos
anos 1960, conduzido por pai e mãe, vim saber muito mais tarde que a casa que
originalmente abrigou a entidade fora de um charqueador (Felisberto José
Gonçalves Braga). No andar térreo, como era comum na época em que foi
construída (1881), havia tanto o lugar das cocheiras como o da escravaria. No andar
superior, a moradia da família do proprietário. O estabelecimento do clube no
local ocorreu provavelmente no final da primeira década do século XX, após um
incêndio e reconstrução da casa do charqueador.
Com meu pai,
na década de 70 (já estudante de História e com a cara enfiada nos livros), fui
aprendendo e conversando a respeito da Pelotas escravocrata. Com espanto,
me dei conta do passado de horror que engendrou o perfil social da cidade que
foi meu território infantil. Os negros apenas ocupavam as atividades menos
remuneradas e assim corria o mundo. As negras carregavam trouxas de roupas na cabeça,
os negros pintavam as paredes das casas, carregavam fardos de lã, e todos
sorriam aos olhos do menino que fui.
Obs.: Sou
obrigado a fazer um comentário de professor. A historiografia sul-rio-grandense
durante décadas silenciou a respeito dos negros em nossa formação social. Moysés
Vellinho é emblemático nesse sentido. Tenho a impressão de que o livro de
Fernando Henrique Cardoso, “Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o
negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul”, foi um ponto de virada quanto
ao tema. Pelo menos, foi na minha formação.
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