quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Lavadeiras, pintores e estivadores

 

Meu território infantil era a Zona do Porto, em Pelotas, entre a Igreja do Sagrado Coração de Jesus e o porto propriamente. A lavadeira era uma negra retinta, que vinha buscar a roupa em casa e a levava feito trouxa em cima da cabeça, andando duas quadras adiante, até onde morava. Às vezes eu saia atrás dela para observá-la equilibrando aquele enorme volume branco (a roupa suja era sempre envolta em lençol branco, como eram todos os lençóis da minha infância) e a cena era fabulosa aos meus olhos de menino.

Uma vez o pai contratou um pintor para reforma interna da nossa casa (que era alugada, não era nossa) e ele era um senhor negro muito sorridente, que trabalhava cantarolando e me pedia para colocar na eletrola o “Samba do Teleco Teco”. Do samba eu não lembro coisa alguma, mas sim a alegria daquele pintor que cantarolava com um pincel ou brocha na mão, em cima da escada, e às vezes contava coisas engraçadas para o menino que ficava ao redor.

Recordo essas cenas porque os negros que circulavam no meu espaço social eram assim: lavadeiras, empregadas domésticas, pintores de parede e estivadores – estes últimos ainda comuns no porto, especialmente nos armazéns da zona portuária. Eram homens negros os trabalhadores que descarregavam os grandes fardos de lã para um depósito próximo ao porto, num caminho que volta e meia eu fazia. “Espetáculo” que eu parava na calçada para assistir.

Pelotas foi um dos maiores centros de escravos africanos no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX, e isso deixou marcas na cidade. Um dia fui a um museu com o pai, vi os instrumentos de ferro utilizados para aguilhoar os escravos (colares, correntes, algemas e cadeados) e fiquei admirado. O pai explicou que era assim no passado, que o modo de tratar aqueles trabalhadores era duro e selvagem, e levei anos para entender esse passado sombrio e o quanto ele deitou raízes e ajuda a explicar a enorme diferenciação social entre negros e brancos que eu via.

"Mãe preta amamentando menino branco" (1988), de Judith Bacci.
Acervo do Museu Leopoldo Gotuzzo.

No esplendoroso Clube Comercial que conheci nos anos 1960, conduzido por pai e mãe, vim saber muito mais tarde que a casa que originalmente abrigou a entidade fora de um charqueador (Felisberto José Gonçalves Braga). No andar térreo, como era comum na época em que foi construída (1881), havia tanto o lugar das cocheiras como o da escravaria. No andar superior, a moradia da família do proprietário. O estabelecimento do clube no local ocorreu provavelmente no final da primeira década do século XX, após um incêndio e reconstrução da casa do charqueador.

 Com meu pai, na década de 70 (já estudante de História e com a cara enfiada nos livros), fui aprendendo e conversando a respeito da Pelotas escravocrata. Com espanto, me dei conta do passado de horror que engendrou o perfil social da cidade que foi meu território infantil. Os negros apenas ocupavam as atividades menos remuneradas e assim corria o mundo. As negras carregavam trouxas de roupas na cabeça, os negros pintavam as paredes das casas, carregavam fardos de lã, e todos sorriam aos olhos do menino que fui.

 

Obs.: Sou obrigado a fazer um comentário de professor. A historiografia sul-rio-grandense durante décadas silenciou a respeito dos negros em nossa formação social. Moysés Vellinho é emblemático nesse sentido. Tenho a impressão de que o livro de Fernando Henrique Cardoso, “Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul”, foi um ponto de virada quanto ao tema. Pelo menos, foi na minha formação.

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