quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Universo "bicho grilo"

 

Reli Hermann Hesse dias atrás, numa edição de 1970, da editora Civilização Brasileira, um exemplar semelhante ao que li quando andava por volta dos 17 anos. Inevitável a associação com a contracultura e o movimento hippie, fenômenos que marcaram a década de 1960 e ainda eram fortes no início dos anos 70. Fenômenos culturais que ganharam a denominação jocosa de “bicho grilo”, isto é, constituído por pessoas que se propunham um estilo de vida avesso aos padrões sociais dominantes, ditados pela sociedade de consumo e o militarismo (no caso desse último, exemplificados pela presença dos Estados Unidos no Sudeste Asiático e o Regime Militar no Brasil). Um universo de quem ouvia Beatles, Rolling Stones e The Who à sério, deixava-se encantar pelo dístico “Paz & Amor”, pela Sociedade Alternativa (cantada por Raul Seixas) e, em alguns casos, lia a coluna do Luiz Carlos Maciel no Pasquim. Não necessariamente a gurizada que curtia isso consumia drogas, mas era tentada a experimentar um cigarro de maconha e/ou um comprimido de LSD.

Pois é, reli Contos, de Hermann Hesse – "Märchen", no texto original, "Contos de fadas", na tradução literal proposta por Otto Maria Carpeaux -, narrativas com as características das histórias tradicionais para crianças – atemporais, fantasiosas e sublimes –, mas com desenvolvimento temático voltado ao público adulto (a arte da aprendizagem, entre elas).

Hermann Hesse (1877-1962) foi um escritor alemão sem relação alguma com a contracultura e os hippies (fenômenos norte-americanos do período da Guerra Fria), mas suas obras foram lidas na década de 1960 como precursoras desses movimentos e, dessa maneira, ressignificadas. Os romances “Demian” (1917) e “Sidarta” (1922) retratam jovens em busca de um caminho espiritual próprio (contrário ao padrão dominante e, inclusive, às suas lideranças espirituais) e caíram como uma luva na sensibilidade da juventude contracultural. Foi dessa maneira que seus livros se tornaram best-sellers nos EUA e se difundiram no Brasil. Na revista Manchete, por volta de 1970, artistas que se diziam “contra o Sistema” eram fotografados sentados na posição iogue com um livro de Hesse nas mãos.

Em Contos, Hesse desenvolveu temas que têm relações com as inquietações da juventude contracultural, como a busca de experiências individuais (mágicas e/ou oníricas) que a distinguisse das massas orientadas pelos meios de comunicação social.

Em “O poeta”, um jovem de 20 anos abandona a família para se dedicar à arte da poesia, pois descobre que nela existe uma beleza não encontrável na realidade. Um aprendizado intenso e extremamente individual que o conduz ao isolamento social e a um estágio espiritual elevadíssimo. Em “Metamorfose”, um jovem busca a integração completa com o mundo, assim como a mudança constante da sua natureza em borboleta, árvore ou nuvem. “Quando [os homens] não possuem o dom da transformação, com o tempo caem na tristeza e se atrofiam”, explica o narrador. Um aprendizado necessário, mas fora do alcance da maioria dos mortais.

Reli esses e outros contos e revivi parte do clima cultural que dominou minha juventude. Escrevo “parte” porque fui aluno de colégio católico, integrante de um grupo de jovens da paróquia do bairro e a Igreja ocupava lugar de destaque na minha vida. Mesmo assim não exagero ao afirmar que, no início dos anos 1970, quando li pela primeira vez esses contos (assim como Narciso e Goldmund e Sidarta), era esse o universo cultural em que vivia.

Lendo "Metamorfose", lembrei de uma namorada que tive aos 16 anos... Foi como se revisse os seus desenhos (belíssimos aos meus olhos de adolescente) com moças e rapazes se transformando em peixes, flores e estrelas. Ela desenhava e falava sobre isso, dizendo que era o que assistia no jardim da sua casa e nas ruas arborizadas do seu bairro (sem nenhum ingestão de LSD ou outra droga qualquer). Ela almejava romper com o universo de classe média católica e conservadora em que era criada... e, relendo Hermann Hesse, fiquei imaginando onde foi parar essa criatura...

Certamente atravessou bosques, subiu montanhas, descerrou portas de castelos, encontrou um mago e aprendeu a pintar lindos quadros e ver o mundo ora como uma árvore, ora como uma gazela ou um cometa. 

Não, não vou encerrar essa crônica dizendo que a antiga namorada entrou nno rol das vidas prosaicas e limitadas que a maioria de nós vive. Não, ela seguiu o Mestre, isto é, o que as narrativas de Hermann Hesse apontavam.

Desenho da antiga namorada encontrada
entre as páginas de um livro.


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