terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Filmaço!

            Dias atrás, fui ao Shopping Bourbon Country assistir ao filme iraniano “A semente do fruto sagrado” e, na saída, fiquei comparando com o brasileiro “Ainda estou aqui”.[1]

Duas formas bem distintas de realizar cinema de cunho político. Tudo muito explícito no caso iraniano (centrado na família de um juiz que assina sentenças de morte aos presos políticos durante uma conjuntura de manifestações contra a teocracia dos aiatolás); tudo muito sutil no caso brasileiro (abordando a família de Rubens Paiva, o ex-deputado preso ilegalmente, torturado e desaparecido pelos órgãos de segurança do Regime Militar).

Cartaz do filme Ainda estou aqui.

“Ainda estou aqui” é uma narrativa muito original – e magnífica – a respeito do modo como uma determinada família (em especial a esposa) encarou as arbitrariedades e violências do Regime Militar, principalmente quanto às técnicas utilizadas pelos militares para enfrentar os seus adversários políticos. No filme, a violência cometida pelos agentes de segurança não é explicitada. Na cena em que os agentes da Aeronáutica vão a casa do ex-deputado e o levam para interrogatório, nenhum deles porta metralhadoras (conforme está registrado pela documentação a respeito). O modo de representar o episódio (a cenografia da prisão) retirou as armas pesadas das mãos dos agentes e deixou apenas um revólver na mão de um deles, que logo é escondido embaixo da camisa.[2]

Esse modo de construir o aprisionamento/sequestro (uma prisão ilegal, pois os agentes não portavam ordem de prisão) me pareceu emblemático do tom da narrativa fílmica (muito distinta da maioria dos filmes que abordam o Regime Militar). A direção do filme “limpou” a cena do aprisionamento e esse modo de representação me pareceu emblemático da narrativa. A violência não se explicita, mas está colocada inteira no drama. Mas, ao final do filme, o espectador está exausto com a crueldade dos agentes militares (e abismado com a beleza da narrativa).

Pelos milhões de brasileiros que têm ido ao cinema e aplaudido, quero crer que a estratégia narrativa é eficaz. O pessoal sai comovido da sala. “Ditadura nunca mais”, grita um e outro espectador, ao final.

O filme iraniano, por sua vez, para alcançar o mesmo objetivo (a denúncia da violência política) opta por explicitar os policiais sentando o pau nos manifestantes e, desta maneira, criar o clima de tormento que atinge o juiz, sua esposa e as duas filhas. A cena em que uma manifestante ferida no rosto é atendida (cena longa, com close no rosto para melhor visualização dos movimentos lentos da pinça retirando as bolinhas de metal cravadas na pele) é exemplar.

Foi isso que pensei batendo pernas pela rua, entre o shopping e o meu prédio. Filmaço, este que Walter Salles realizou e Fernanda Torres e Salton Melo representaram com brilhantismo. Mas destaque especial para a cena muda da personagem Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Montenegro, no final: a viúva de Rubens Paiva na cadeira de rodas, doente, na frente da TV, assistindo a um documentário sobre o Regime Militar, e subitamente despertando para as atrocidades dos militares. Cena antológica a respeito do horror – o horror! – que os regimes autoritários são capazes de produzir.



[1] A semente do fruto sagrado, direção e roteiro de Mohammad Rasoulof. Irã / Fr. / Alemanha, 2024, 167 min.; Ainda estou aqui, direção de Walter Salles, roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega. Br. / Fr., 2024, 135 min.

[2] No filme, não fica claro que os agentes do aprisionamento de Rubens Paiva são da Aeronáutica, apenas que são agentes da repressão. Na sequência, não há cena da tortura, morte e desaparecimento do cadáver do ex-deputado. Conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, Rubens Paiva foi levado para a III Zona Aérea, no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, e ali começou a tortura, com o propósito de descobrir informações sobre Carlos Lamarca. Depois ele foi transferido para o DOI-Codi do I Exército, onde foi morto. Posteriormente os militares jogaram o seu cadáver no mar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Os desígnios de Deus

 

Minha mãe costumava marcar missas no aniversário de morte do pai. Às vezes na Igreja São Pedro, no Bairro Floresta, outras vezes na Igreja Santa Teresinha do Menino Jesus, no Bom Fim. Nunca soube as razões das escolhas. Na São Pedro, certamente porque foi a sua paróquia durante décadas; na Santa Teresinha, não sei. Mas ela me avisava o local e o horário e, se eu pudesse, estava lá. Quando passei a morar em Santa Maria, muitas vezes organizei viagens a Porto Alegre que coincidiam com a data da missa. Eu não mais me enquadrava na figura do católico praticante (desde os 18 ou 19 anos), mas ir à missa com ela era outra coisa.

Pois outro dia estava caminhando no Bom Fim, passei na frente da igreja Santa Teresinha, e lembrei dela. Era fim de tarde, as portas estavam abertas, rolava uma missa lá dentro e resolvi entrar. É uma igreja muito bonita, em estilo neogótico (construção dos anos 1920), e caminhei até os primeiros bancos para observar o conjunto escultórico que existe na parede dos fundos do altar: Santa Teresinha ajoelhada aos pés de Nossa Senhora do Carmo, essa última com o Menino Jesus nos braços.`

Sta. Teresinha do Menino Jesus diante de N. Sra. do Carmo.

Lembrei que conversava com a mãe a respeito dessas figuras (as esculturas da igreja são impactantes), pois mesmo não sendo mais religioso o universo do Catolicismo me interessava. A Ordem dos Carmelitas atende a igreja e, justo nesse dia, a liturgia era voltada a Nossa Senhora do Carmo, padroeira da congregação. A Senhora do Escapulário, como também é conhecida, promotora desse costume de trazer este pequeno amuleto junto ao peito, simbolizando a proteção da Mãe de Deus. Costume que segui na infância.

Pois peguei o folder com a liturgia da missa e fiquei lendo as orações a Nossa Senhora do Carmo. Muito bonitas e até comoventes, na medida em que lia e lembrava da minha mãe. Mas era a parte final da missa, o padre propôs uma benção aos fiéis e eu resolvi ir embora. Aquilo não era para mim e me pareceu um abuso eu receber uma benção. Gosto de igrejas, gosto especialmente de arte sacra, o ambiente religioso ainda é carregado de significados, mas fico por aqui. Meu gosto e interesse é apenas estético e cultural, sem relação com a fé e as crenças católicas. Então saí da igreja e fui caminhar pela Avenida Osvaldo Aranha, pegar meu ônibus e voltar para casa.

Santa Teresinha do Menino Jesus viveu na França, no século XIX, e morreu de tuberculose, aos 24 anos. Uma das figuras da Igreja a respeito da qual tenho curiosidade. Poucos anos atrás comprei o seu livro “A história de uma alma”, publicado logo depois de sua morte, mas não avancei na leitura. Ela sacrificou a vida em nome de Deus e às vezes eu conversava com a mãe a respeito dessas trajetórias extremadas dos santos... sempre um modelo para a maioria dos católicos.

Minha mãe pensava a respeito dos desígnios de Deus, a vontade do Pai, e “dizer sim à vontade de Deus” estava entre as suas preocupações. “Ver nos acontecimentos a mão providente do Pai”, conforme está escrito numa das orações a N. Sra. do Carmo. Mas dentro de uma clave normal, sem os exageros da santidade, claro. Acho que até no suicídio do marido ela procurava ver a mão de Deus, os seus desígnios misteriosos. Eu não dizia nada quanto a isso. Quando a conversa enveredava para a morte do seu marido (meu pai), eu me limitava a recordar (e muitas vezes esmiuçar) os episódios reais, concretos, em torno do suicídio (a depressão psicológica que ele viveu, a falência do Montepio da Família Militar, empresa da qual ele era empregado e que, por razões desconhecidas, atormentou o seu final de vida) e, aí sim, me esforçava para decifrar o que que sabia. A vontade de Deus, essa eu ignorava e continuo ignorando.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Verde esmeralda

 

A história é mais ou menos a seguinte: a mulher está se separando, está com a papelada do divórcio encaminhada, só falta assinar, e súbito ela acha que poderia ter feito mais alguma coisa pelo marido.

A vida do esposo degringolou desde que ele largou o que vinha fazendo ao longo dos anos e resolveu ter a própria empresa. Tinha esse sonho. Tentou vários negócios, em todos se deu mal. Gastou o que tinha e o que não tinha, se endividou e se sentiu arrasado. Injustiçado. Perseguido por um "sistema injusto em relação àqueles que ambicionam sair da mesmice”. Na sequência, encrencou a sua vida pessoal. Arranjou amantes esporádicas (“Para reerguer a autoestima”, justificava para si mesmo), até que passou a chegar tarde em casa, fazer viagens inesperadas e a esposa achou que passara da conta. Ela se pôs a campo, descobriu que ele estava envolvido com uma mulher mais nova e o colocou contra a parede:

– E agora, tu tá querendo o quê? Qual é o sonho, a ambição, o projeto? Onde eu entro nessa história?

O marido enrolou, disse que estava numa fase difícil, e só mais tarde admitiu que estava querendo “um tempo sozinho”. Saiu de casa, levando o único carro da família e demorou quase dois anos para acertar a separação, a pensão para a filha e coisas do gênero. Agora que está tudo encaminhado, a esposa pergunta para a terapeuta:

– Será que eu não poderia ter feito mais por ele? Compreender e apoiar os seus sonhos, a sua luta?

A psicóloga não responde. Devolve a pergunta:

– E não fez?

– Será que eu fiz tudo?

– Acho que tu deste o melhor.

 A mulher ficou calada. Sua vida passou como um filme na sua frente e ela teve certeza de que fizera o possível. Ou o que sabia, o que estava ao seu alcance. Procurou com os olhos alguma coisa no consultório onde fixar a sua atenção e encontrou um relógio dentro de um círculo de porcelana azul marcando 15h20min. “Tenho mais 30 minutos de sessão ou 40?”, pensou. Não sabia. Estava com quase 50 anos e sem a mínima ideia de quanto anos mais pela frente.

– Sim, acho que fiz... Na verdade, dei o melhor de mim – ela disse, e apontou o relógio.

– Quanto tempo eu tenho? – perguntou.

A psicóloga disse que ela não se preocupasse com o tempo da sessão, se preocupasse com a sua vida, o seu tempo, e ela riu.

– Sim, é nisso que estou pensando. – E passou a mão pela frente do rosto como se afastasse uma mosca e falou de um vestido verde que vira na vitrine de uma loja do térreo do prédio do consultório. – Um verde muito bonito, que combinam com uns brincos de esmeraldas que comprei anos atrás, na Colômbia. Vou comprar e usar no dia em que for assinar a papelada do divórcio - garantiu, sorrindo.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Mundo desigual

 

Dizer que o mundo é desigual é chover no molhado. Mas sempre rende alguma perplexidade quando nos deparamos com casos reais, específicos. Pois foi o que aconteceu comigo nessa madrugada ao abrir a caixa de e-mails. Sob o título “Diárias polpudas”, um amigo militar (coronel reformado) me enviou uma notícia relativa a um conselheiro do TCE de Roraima, que tem recebido, há mais de um ano, diárias de R$ 2.540,00 para cursar o Mestrado Profissional em Administração, na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. O curso iniciou em agosto do ano passado e o conselheiro/mestrando passou a vir ao Rio uma vez por mês e ficar uma semana para cumprir as suas obrigações acadêmicas.

Segundo a notícia do jornal “Metrópoles”, tudo nos conformes.[1] O TCE de Roraima pagou R$ 70.000,00 à Fundação Getúlio Vargas para o seu funcionário cursar o mestrado e agora desembolsa o auxílio regular que a instituição reserva a um conselheiro em viagem. Tudo dentro do que a legislação do Judiciário estabelece. No caso desse conselheiro, a média de diárias mensais tem sido de R$ 15.000,00 e ele lidera o ranking dos funcionários que mais tem obtido essa vantagem. Atualmente, a bolsa que a Capes, o órgão do Ministério da Educação que trata do financiamento para a pós-graduação, paga R$ 2.100,00 mensais para os mestrandos e eles que se virem para sobreviver com essa grana.

Meu amigo militar me enviou essa mensagem porque sabe que fui mestrando, que meus amigos (muitos deles seus ex-professores) também fizeram pós-graduação com bolsas da Capes, viajando de uma cidade a outra muitas vezes e contando os trocos. No caso de uma querida amiga (que ele bem conhece) o périplo consistia em viagens semanais para assistir aulas – com o dinheiro contado, mas agradecendo a Deus por ter ter uma bolsa da Capes. Ela viajava de Santa Maria a Porto Alegre de manhã cedo, assistia aula na PUC, dormia numa pensão de freiras (na Rua Ramiro Barcelos), encarava mais um dia de aula e depois voltava a rodoviária para pegar o ônibus para Santa Maria. Tudo isso sem usar táxi, era muito caro, e, como adiantei acima, agradecendo a Deus por ter conseguido a bolsa. Uma jornada que implicava a ginástica de carregar uma pequena mala, mais pasta de livros e atravessar o corredor do ônibus Ipiranga-PUC de ponta a ponta. Certamente algo que o mestrando/conselheiro do TCE de Roraima jamais saberá.

Acrescento que o meu amigo coronel não é desses que acham que os militares não tenham regalias. Ele fez carreira no Exército, ocupou cargo no Forte Apache, em Brasília, e conhece bem o padrão dos membros das Forças Armadas, seu sistema previdenciário, entre outras coisas. Volta e meia me envia e-mails com notícias escandalosas (ao menos para nós, reles civis) relativa à farra dos acepipes para os coquetéis militares, mais as aposentadorias, pensões e as "boquinhas" que centenas de oficiais conseguiram para si próprio e familiares durante o Governo Bolsonaro. Se diverte, esse meu amigo. Não acha que as coisas vão mudar – a sociedade brasileira não tem colhões para uma revolução, ele diz. 

De todos os meus amigos, foi o único que sustentou que as Forças Armadas não iriam deixar passar barato a derrota eleitoral de Bolsonaro, seu instrumento para a retomada do poder em 2018 e sua continuação em 2022. "O golpe é coisa certa", ele afirmava. Acertou. Estava tudo armado. Foi por um triz que a coisa não vingou.

Meu amigo é um homem sem ilusões. Sabe muito bem que a elite da burocracia estatal, civil e militar, trata a si própria muito bem, tal qual a elite econômica (os super ricos que resistem às tentativas de aumentar a taxação de seus rendimentos pela Receita Federal). É ferro no populacho, ele diz. Sem bolchevismo esse país não tem conserto, garante.

Escrevo isso porque habitualmente silencio a respeito das desigualdades da sociedade brasileira. Não consigo cronicar a respeito do assunto. É complicado. Muitas vezes, revoltante. E opto por assuntos agradáveis. 


[1] LORRAN, Tacio. Conselheiro de RR ganha R$ 207 mil em diárias para fazer mestrado no Rio. Metrópoles, 09/12/2024.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Museu de Roskilde

 

         Em setembro de 2022 eu fui a Turquia e um sobrinho, que mora em Copenhague, me sugeriu uma esticada até lá. “Copenhague não fica muito longe de Istambul”, ele me disse (sem dúvida fica muito mais próxima do que de qualquer cidade brasileira) e resolvi encarar. Valeu a pena. Meu sobrinho preparou um roteiro impecável e foi uma semana de tirar o fôlego. Um dos locais escolhidos foi a cidade de Roskilde, a meia hora de trem de Copenhague, num rico dia de outono, com céu azul e folhas vermelhas nas árvores. Cidadezinha impecável, de cinema, isto é, daquelas que a gente só conhece nos filmes, devido à organização, limpeza e beleza.

Roskilde foi um núcleo urbano importante no final da Era Viking (séculos VIII a XI), centro religioso e político, e depois sede do primeiro bispado cristão da Dinamarca, local de uma grandiosa catedral gótica, construída entre os séculos XII e XIII, local de enterramento de reis e rainhas desde o século XV. O túmulo da rainha Margarida II, monarca da Dinamarca naquele ano, já estava pronto, esperando o seu corpo. A rainha renunciou em favor do filho no final de 2023 e, pelo que tudo indica, o túmulo ainda está lá, vazio, esperando a sua proprietária.

Rua pitoresca de Roskilde, que me pareceu cenário de conto de Anderson.

Naquela manhã nosso passeio começou pelas ruas pitorescas da cidade (provavelmente com o mesmo feitio que tinham no século XIX – ou pelo menos foi assim que enxerguei – como se constituíssem o cenário dos contos de Anderson) e continuou pelo interior Catedral, em especial pelas capelas com os túmulos dos antigos monarcas (alguns de um luxo estonteante – "Pra que tudo aquilo?", pensei, "que sacrifício, o do povo pobre! Que satisfação, a dos plebeus visitantes!"). E na sequência seguimos por um parque meticulosamente cuidado que dava no museu dos barcos vikings: o Museu de Roskilde.

Uma das capelas no interior da Catedral de Roskilde, com sepulturas luxuosas
de monarcas dinamarqueses.

Por volta do ano 1000, cinco navios vikings foram afundados no canal que liga a cidade de Roskilde ao mar, com o propósito de impossibilitar a chegada de embarcações inimigas. O local se tornara um centro político importante do recém unificado reino da Dinamarca, havia perigo de ataques e as naus submersas tiveram o propósito de defesa. Quase mil anos depois (em 1962) elas foram descobertas, desenterradas e abrigadas num vasto museu, na beira do canal de onde costumavam ancorar e partir.

Museus das embarcações vikings.

Um museu para ficar vagando e sonhando, imaginando como eram as viagens daqueles navegadores ousados, que cruzaram o Mar do Norte, estabeleceram “colônias” na Inglaterra e na França (neste último país, na atual Normandia), contornaram a Península Ibérica e entraram Mediterrâneo adentro, assim como chegaram às cidades de Constantinopla e Bagdá (conforme indicado num mapa dependurado na parede do museu).

Roteiros das expedições vikings.

Há réplicas em tamanho real dos antigos navios, tanto dentro como fora do museu, nos quais é possível entrar e sentir/imaginar o que devia ser viajar/navegar naquelas pequenas embarcações... Há capacetes para vestir e pousar de guerreiro, uma experiência para fazer a criança que ainda habita alguns de nós pular de alegria.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Bolsonarismo na veia

 

O bolsonarismo é uma força avassaladora. Assisti amigos serem engolfados por esse movimento político e até hoje me horrorizo com o fenômeno. De todas as figuras que acompanhei nesse processo, a que mais me espantou foi a de um professor que conheci nos anos 1980, quando ambos fomos nomeados para o Magistério Estadual, numa escola da zona norte de Porto Alegre. Colegas e depois amigos, lecionávamos numa escola de madeira, no curso supletivo noturno, para alunos adultos, muitos deles trabalhadores em lojas, bares e hotéis, pequenas oficinas e casas de família, com baixo salário e condições de vida precária. Um alunado que indicava para nós (ambos com formação marxista – a dele, muito superior à minha), a necessidade urgente de “transformações socioeconômicas profundas no País”.

Ambos éramos simpatizantes do PT e gastávamos horas discutindo as diferentes tendências do partido e a melhor orientação para a formação “de uma classe trabalhadora consciente e unificada”. Mas o tempo passou e a última vez que o vi foi nas proximidades do acampamento bolsonarista em frente ao Comando Militar, em Porto Alegre (em novembro de 2022), e não tive coragem de perguntar se ele estava na luta por intervenção militar e suspensão do resultado das urnas, ou, como eu, apenas bisbilhotando. Quando nos conhecemos, a conquista da democracia liberal era questão de princípio, a emenda Dante de Oliveira (por eleições diretas para presidente da República) fora recém derrotada, mas não esfriara nas nossas cabeças.

Tudo bem que, com o passar dos anos, ele abandonasse o imperativo das mudanças socioeconômicas profundas “do ponto de vista das classes populares” e adotasse princípios liberais na economia e os reajustes no sistema capitalista que constituem a pauta neoliberal. Nós dois ascendemos socialmente (de professores de escola estadual migramos para a universidade federal) e um certo aburguesamento de atitudes e ideias é inevitável. Mas detonar o jogo democrático liberal, não. Alinhar-se com os setores reacionários das Forças Armadas, nostálgicos do AI-5 (instrumento jurídico da consolidação da ditadura militar no Brasil, em 1968) e da tortura como método de enfrentamento político-militar, jamais.[1] Marchar com o neofascismo, nunca.

Mas meu amigo ultrapassou todos esses limites. Começou aderindo ao ideário do PSDB (em especial a pauta econômica, a do “enxugamento do Estado”, as privatizações), depois à Lava-Jato (não apenas o combate a corrupção, mas o desmonte do projeto neodesenvolvimentista que colocava a Petrobrás como um dos eixos), o impeachment da Dilma, o Teto de Gastos e, cúmulo dos horrores, a adesão a candidatura de Bolsonaro à presidência da República (com todos os indicativos antidemocráticos que ele sempre deu, nunca escondeu, ao longo de sua carreira de deputado).

Todo mundo tem direito de mudar, dirá o leitor mais tolerante. E eu respondo: sim, com certeza. Mas tem limites. Migrar da esquerda marxista para a extrema-direita bolsonarista é demais. Pra mim, incompreensível.

Manifestação bolsonarista em Santa Maria, abril de 2021, em protesto
às medidas restritivas para enfrentar a pandemia da Covid.

No início desse ano, vi meu  ex-amigo endossando as teses da “ditadura do Judiciário”, das arbitrariedades feitas contra os manifestantes do 8 de janeiro de 2023, da inocência dessa massa que agiu como cabeça de ponte de um movimento golpista fracassado e afirma ter ido a Brasília “para orar pelo país”.

          Realmente um fenômeno que está fora do meu entendimento. Deve existir alguma droga que os bolsonaristas injetam no corpo de seus militantes e simpatizantes, capaz de alterar seus corações & mentes e os fazerem verbalizar e ter comportamentos tão descabidos, muitas vezes sem sustentação na realidade, apenas na paixão ideológica.


[1] O voto de Bolsonaro no impeachment da Dilma, dedicando-o ao coronel Ustra, é emblemático da sua adesão à herança mais abjeta do Regime Militar, isto é, a tortura como instrumento de luta. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Coisas da política e da vida privada

 

Na sexta-feira, caminhei pelo centro de Porto Alegre e fui parar no Mercado Público. Provei uma pasta de grão de bico, uma espumante de Vacaria e acabei comprando as duas coisas. Depois fui tomar um café, ler a Zero Hora e gostei dos comentários de Rosane de Oliveira a respeito das maquinações golpistas de Bolsonaro e seus generais.[1] Segundo a cronista, o amadorismo desses militares nos salvou de uma ditadura mais sangrenta que a de 1964. Mais sangrenta porque iniciaria com três assassinatos, o de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. Felizmente o troço desandou, a execução dos crimes não teve prosseguimento e agora está tudo vindo à tona.

A cronista da ZH considera que os fatos são estes, conforme o indiciamento da Polícia Federal substancialmente comprovados, mas acrescento que são contestados pelos bolsonaristas que acompanho nas redes sociais. Eles falam em “suposto golpe”, “narrativa falsa”, “argumentação jurídica ilegal”, “acusação inconsistente, pois o caminho do crime não foi percorrido, apenas pensado” e assim por diante.

No Mercado Público de Porto Alegre, diante do jornal aberto sobre a mesa e de uma xícara de café, eu pensei nos bolsonaristas conhecidos e imaginei uma figura que os sintetizasse. Então criei o Ademar, um empresário de 68 anos, que esteve presente nos acampamentos na frente dos quartéis, endossou o chamamento por “intervenção militar” após a derrota eleitoral e acreditou que a manifestação de 8 de janeiro foi um ato político de protesto “desfigurado por militantes do MST infiltrados”. Um direitista de coração, com problemas de cognição e raso entendimento de política.

Pois Ademar se afastou da militância no último ano, centrou sua atenção na atividade profissional, mas não mudou de opinião nem de posicionamento político. Nesta semana quebrou o silêncio e compartilhou postagens no Facebook denunciando a “farsa dos comunistas que estão instrumentalizando a PF e a Rede Globo”. Imagino que esteja impossível, vociferando indignações, e talvez enchendo os ouvidos da sua nova namorada (Sueli, 63 anos) com informações oriundas de grupos de WhatsApp e da Revista Oeste. Sueli não comunga com o seu ideário político-ideológico, mas não contesta. Às vezes contrapõe uma coisa e outra, mas sempre com muita leveza, apenas para dizer que está ali, que tem uma voz. Os dois têm um relacionamento sem compromisso (Ademar e Sueli são recém separados) e vão “devagar com o andor”, como dizem um para o outro. Sueli acha Ademar um homem de “cepa tradicional” e tanto gosta disso como às vezes se assusta, pois tanto conservadorismo (especialmente machismo) às vezes incomoda. Ele considera Sueli uma mulher ousada, às vezes "meio comunista", e tanto isso o fascina quanto o preocupa e o faz recuar.

Ademar vive um momento difícil na sua vida pessoal devido ao divórcio, a divisão do patrimônio construído em décadas de trabalho com a antiga esposa, a queda nos rendimentos e a "necessidade" de dobrar suas horas de trabalho. Para as amigas, Sueli sintetiza a situação de Ademar:

– Agora que está com quase 70 anos, quando achava que só iria aproveitar a vida, se sente obrigado a recomeçar do zero e está inconformado. A situação repercute em vários aspectos da sua vida, na mente e no corpo, e muitas vezes se acorda no meio da noite e vai fumar na varanda, esquecido de que eu estou ali, com ele – ela acentua. - Falar mal do governo petista, do Vagabundo na presidência da República, às vezes é uma válvula de escape. Eu compreendo, mas canso.

Diante da Zero Hora na minha frente, considerando as informações a que tenho acesso, percebo não ter grande coisa a dizer a respeito da situação política que vivemos, mas posso fabular, ora bolas. Já escrevi tanto sobre esquerdistas que se sentem acossados pela sociedade dominante (meu livro de contos Uísque sem gelo tem muito disso) que é bom mudar o foco (fiz isso no meu romance Os caminhos de Santa Teresa) e tratar de direitistas que se sentem perseguidos pelo Sistema e até fantasiam tomadas violentas do poder. Fantasias insurrecionais que os levaram à frente dos quartéis cantando hinos patrióticos, instrumentalizados por um capitão esperto e seus generais... Felizmente, quase todos eles, profundamente amadores.



[1] OLIVEIRA, Rosane de. Golpistas deixaram rastros para todo lado. Zero Hora, 24/11/2024, p. 6.