quarta-feira, 24 de julho de 2024

O Massacre dos Inocentes

 

Quando criança, me assustava com os rompantes de fúria do meu pai. Ele perdia as estribeiras conosco, os seus três filhos, e às vezes nos sapecava uns safanões, algumas palmadas. A mãe era contra este tipo de pedagogia e protestava. Essas atitudes do pai geravam desavenças tremendas entre eles, minha mãe chorava e eu me assustava ainda mais. Na verdade, me angustiava. Senti-la atormentada pelo meu pai abria um rombo dentro de mim. Uma ferida, me disse o psiquiatra. Compreender esta situação, reparar essa ferida, foi tarefa de uma vida.

Meu pai não era um homem violento. Mas era furioso e fazia um esforço enorme para se controlar. Um homem que tinha também uma faceta amorosa e deixou isto claro na relação com a mulher e os filhos. "Mas às vezes perco as estribeiras”, gostava de dizer. E reconhecia que a esposa o ajudava a dominar os seus rompantes, conforme falou.

Minha mãe, por sua vez, não era uma mulher dominada pelo marido, muito menos atormentada por ele. Uma mulher de perfil tradicional, sim, que compreendia o marido como “cabeça da família” (ela conhecia as epístolas de São Paulo), mas se garantia. Tinha a sua vida, suas ideias, profissão (era professora primária) e muita determinação, coisas que o pai admirava. “Ela daria uma ótima administradora de empresa”, ele dizia, ao comentar o modo como ela organizava a vida doméstica.

Compreender e aceitar meus pais creio que foi uma das tarefas da minha vida. Assim como reparar os danos que a relação com eles desencadeou em mim.

Pois madrugada dessas sonhei com as brigas ocorridas na infância e estranhei o modo como elas foram lembradas... Acordei, fui até a cozinha fazer um chá e me dei conta de que o sonho era sem aflição, sem angústia, e, sim, semelhante ao que vivemos diante de um quadro, assistindo a um filme, lendo um livro... Semelhante ao que eu vivi na Galeria das Tapeçarias, no Museu do Vaticano... Naquela ocasião, eu me deparei com uma série de tapetes belíssimos, um deles denominado “O Massacre dos Inocentes” (aquele determinado por Herodes, quando soube que o Messias havia nascido) que me deixou encantado. Um tapete feito em Bruxelas, no século XVI, com um equilíbrio dramático magnífico.[1]

Detalhe de "O Massacre dos Inocentes".
(Museu do Vaticano)

Sim, eu estava (estou ainda) ressignificando um episódio infantil que me marcou, pensei enquanto tomava o chá e escrevia a respeito. Não estava renegando o sofrimento que a cena de infância comporta, mas encarando-o de outra maneira. Compreendendo melhor os meus pais (como eles eram intensos nos seus sentimentos!) e inclusive o pirralho fantasioso que eu era. Compreendendo, aceitando, reparando, e me sentindo mais próximo deles.

Quando terminei o chá, lembrei de uma professora de artes no Julinho (Colégio Júlio de Castilhos) que um dia me falou para nunca abandonar o gosto pelas artes. “A arte serve para muitas coisas, inclusive para a nossa vida pessoal”, ela afirmou, numa conversa de final de aula.

Tinha razão a professora, a emoção que “O Massacre dos Inocentes” me proporcionou... serviu de estribo para eu melhor reorganizar as lembranças da infância. Me deu “estribeiras”, penso agora, para realizar esta tarefa e cicatrizar uma ferida, complementando um longo esforço de psicoterapia.

Que bobagem dizer que a arte é inútil!



[1] Segundo a legenda das obras: “Serie della Scuola Nuova con episodi della Vita di Cristo da cartone della scuola di Raffaello. Bruxelas, 1524-1531 – Bottega di Pieter Van Aelst.”

sábado, 20 de julho de 2024

Conversa com motorista de aplicativo

 

Estava em Porto Alegre e acessei o aplicativo para chamar um carro para me levar ao shopping. Queria fazer uma refeição rápida e assistir a um filme. Entrei no veículo, o motorista estava com o verbo e começou dizendo que a vida não está fácil. Falou da inflação descontrolada, do preço dos alimentos e disse que o governo não está facilitando, pois o Lula fala o que não deve, mete os pés pelas mãos, é um desastre. Eu comentei que a inflação está abaixo das previsões e o Lula apenas rebate o alarmismo dos agentes do mercado. Enquanto isso o ministro da Fazenda, em total sintonia como Presidente, negocia com os representantes da classe patronal e busca atender as suas demandas.

– É jogo duro – conclui. – Difícil conciliar essas demandas do mercado com as necessidades dos trabalhadores.

Desconfiei que o homem era eleitor do Bolsonaro e utilizei palavras fora do usual para sinalizar que ele não estava conversando com um tonto. Imaginei que ele estava na faixa dos 70 anos (75 anos talvez) e perguntei se era motorista desde cedo.

– Não, tive comércio alguns anos. Uma loja de roupas, perdi tudo e fui para o táxi. Agora estou no aplicativo.

– Sempre aqui em Porto Alegre?

O homem respondeu que sempre trabalhou na região metropolitana, desfiou a sua vida e descobri que tínhamos a mesma idade: 68 anos. Ele era natural de Cachoeira, da zona rural, mas logo a família se mudou para a cidade e, aos trancos e barrancos, ele foi em frente. “Sem grandes confortos”, acentuou. Cursou um colégio comercial e acrescentou, com orgulho, que “naquele tempo os colégios formavam gente para o trabalho e não como hoje que deixam a gurizada sem saber fazer coisa alguma”. No final dos anos 70 estava em Alvorada e foi aí que abriu a sua loja.

Lembrei (mas não falei) que nesta mesma época (1978) comecei a lecionar num grupo escolar (Júlio César Ribeiro de Souza) logo na entrada de Alvorada. Uma escolinha de madeira que, mais tarde, foi reconstruída com material, prédios de dois pisos, uma modernização só (ao menos visto de longe).

O homem falou a respeito das dificuldades em manter um pequeno comércio numa cidade como Alvorada, observei o seu corpo castigado (se teve empregados, devia pegar parelho com eles, imaginei) e não disse a minha idade. Fiquei constrangido.

É isto: às vezes me constranjo com a minha origem na classe média (filho de pai bancário e mãe professora primária), que não viveu as agruras do campo, sempre morou no espaço urbano e teve acesso a comodidades e confortos. E, apesar de ter sido professor da rede estadual por mais de uma década, não vivi a precariedade da maioria dos brasileiros. Um privilegiado, de certa forma.

O homem me pareceu um trabalhador castigado pela vida e voltou à carga em relação ao governo petista.

– Não é desse jeito que se governa um país – ele falou.

Um bolsonarista, concluí, e me calei, sem ânimo de continuar a conversa. Fiquei olhando a cidade, a parte bonita de Porto Alegre (estava indo na direção do Shopping Bourbon Country), e lembrei que esta é uma cidade que passou por um desastre natural, em grande parte acentuado pelo negacionismo (alimentado pelo bolsonarismo) do grupo dirigente tanto no governo estadual quanto no municipal. Um negacionismo que ocasionou o relaxamento dos cuidados ambientais e do sistema de proteção de Porto Alegre em relação às cheias do Guaíba. Uma cidade que ainda tem marcas da enchente em algumas paredes, mas não na região do shopping em que eu desci para ir jantar e assistir a um filme.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Conversa entre homens

 

É uma conversa entre homens numa casa comercial de vinhos. Uma conversa sobre a imigração italiana, vinhos e mulheres. Imigração na Serra Gaúcha, vinhos e mulheres da mesma região. Três homens originários da imigração italiana, descendentes dessa gente que veio para o Brasil no final do século XIX, graças às políticas do Império que visavam povoar a encosta da serra. Três homens que vou chamar de Pedro (50 anos), Joel (68) e André (70), todos eles com infância na zona colonial. Pedro, um professor universitário; Joel, comerciante, e André, funcionário público aposentado.

– Nossos antepassados vieram ocupar uma terra que não tinha serventia para a pecuária – diz André, o mais velho entre os três. – Sofreram muito. Era tudo mato e sem ninguém habitando.

– Havia índios – corrige Pedro, o professor – que os bugreiros trataram de liquidar ou empurrar para longe. Peleia braba que ninguém conta.

Os outros dois se olham, não dizem nada. Não sabem coisa alguma sobre os índios. Os bisavôs tiveram acesso à terra (lotes que pagaram a longo prazo) e nunca falaram a respeito dos primitivos habitantes da região. Ou, se falaram, o assunto se perdeu. Ficaram apenas as histórias a respeito da trabalheira que foi desmatar os lotes e colocar aquela terra a produzir.

– Na virada do século XIX para o XX, eles começaram a produzir vinho – afirma Pedro. – Um vinho artesanal, para consumo local. Depois quiseram comercializar para fora da zona colonial e não deu certo. O produto não suportava o transporte, perdia qualidade, azedava mesmo. Foi preciso a intervenção de agências estatais, voltadas à melhoria da agricultura, para a coisa mudar.

André, que é da opinião de que o Estado só atrapalha, torce o nariz, diz que não é bem assim:

– O empreendedorismo dos imigrantes sempre foi muito forte, Pedro.

– Não nego. Mas sem o empurrão do Estado a coisa não andaria pra frente. Dizer isso não é desvalorizar nossos antepassados.

– Pois é, o vinho era ruinzinho – reconhece André, com sua experiência comercial – e bebemos muito esse vinho ruim. Assim como tivemos mulheres que... também careciam de mais qualidade – ele arremata, rindo.

– Mas as coisas mudaram – opina Joel, aposentado e divorciado há alguns anos. – As mulheres estão diferentes. Eu ando saindo com uma guria nova e estou percebendo isso. Ela tem quarenta e um anos, e muito topete. É independente e cheia de ideias. Tem opinião sobre tudo, infelizmente de esquerda. Mas é mulher de fino trato.

– Originária da Colônia? - pergunta Pedro.

– Sim, neta ou bisneta de colonos. Mas nasceu e cresceu na cidade, é professora e nunca deu comida pra porcos.

Os três riem, um lembra as madrugadas em que saia para tirar leite das vacas, o outro das bolhas nas mãos devido ao uso da enxada e o terceiro dos porcos mesmos, do serviço para alimentá-los. 

– Mas ela tem o mesmo pedigree que nós – conclui o professor. – A Colônia se herda, ela não sai facilmente do corpo.

– Isso é verdade. É uma cepa muito forte – acrescenta Joel. – Só que na hora do vamos ver ela é muito arisca, isto sim, e nisso se aproxima do mulherio da Colônia, não se solta, sei lá. Lembra a minha ex-mulher neste quesito. Com a diferença de que é mais ajeitada, teve mais trato, e é muito jovem, com a bunda durinha, o que é muito estimulante para mim.

Os outros riem e um deles diz o inevitável nestas circunstâncias:

– Tá podendo, hein?

André retoma as suas ideias sobre as mulheres da Colônia e comenta:

– Acho que este é o perfil do sexo feminino na nossa região, entre aquelas da nossa faixa etária, as que nasceram nas décadas de 50 e 60. Um produto muito judiado, que merecia ter tido melhor trato. As avós faziam sexo por obrigação, passavam isso para as filhas, para as netas. Todas recatadas, todas fazendo cu doce na cama – endossa André, com alguma mágoa.

– É uma tese – diz Pedro, o professor, fazendo de conta que está batendo palmas. – Mas o mundo gira, os costumes mudam... E as mulheres estão mudando neste “quesito”, para usar a expressão do Joel. Vocês lembram o que era uma mulher separada décadas atrás? Se ela mostrasse que gostava da coisa, se saísse trepando, era um escândalo. Hoje, não.

– O mundo era muito injusto com as mulheres. E nós, homens, não as tratamos bem. Temos de reconhecer isto – acrescenta Pedro. – Este é o meu entendimento. As coisas começaram a mudar, a partir dos anos 90, penso eu, e desde então estamos aprendendo.

– Aprendendo com as mulheres, tu queres dizer? – insiste Joel.

– Sim, com as mulheres – responde Pedro. – Às vezes tenho a impressão de que elas saíram da toca e só então passamos a ver como elas são.

– Será que ainda temos tempo para isso? – pergunta Joel, o mais velho. – Isto é, tempo para ver, aprender e experimentar? A medicina tem nos ajudado a manter o vigor... mas não sei quantos anos ainda tenho pela frente. Às vezes eu olho aquela bichinha na minha cama e tenho vontade de começar tudo de novo.

– Casar? – pergunta Pedro, espantado.

– Sim. Se ela não fosse tão arisca comigo, eu era capaz dessa loucura.

– É vinho de boa pipa, então? Amadeirado e com notas de uma pera da Pérsia, confere? – debocha Joel. – Juro que não acredito que tu farias uma coisa dessas.

– Não, não vou fazer – adianta Joel. – É vinho de boa pipa, mas não pra mim. Muito arriscado na minha idade. Só estou gostando da experiência, da carne nova, e até do jeito opinativa dela, toda esquerdinha, uma comunista. No resto, é muito parecida com minha ex-mulher, como já disse.

Joel pega uma garrafa de merlot e acrescenta:

– Vai passar. É coisa passageira.

André e Pedro dão tapas nas costas do amigo.

– Aproveita enquanto dá – diz um.

– Vai com tudo – fala o outro.

Depois os dois afirmam que as loucuras passam e voltam ao tema dos vinhos. Escolhem garrafas nas prateleiras, examinam os rótulos.

– Felizmente os vinhos da Serra melhoraram – diz um.

– Mais os brancos do que os tintos. Especialmente os espumantes – acrescenta outro.

– E isso, de forma moderada, nós podemos beber sem medo – sintetiza Pedro.

– Ainda temos tempo de vida para tanto – acrescenta Joel, assinalando os seus 70 anos. – Mas tu, Pedro, guri de 50 anos, ainda nem sabes o que é velhice. Deixa chegar na minha idade. André, com seus 68 anos, já está vendo como é.

Os três riem. Os três enchem uma caixa de vinhos cada um, se despedem e deixam a casa de bebidas.

domingo, 23 de junho de 2024

A Comuna de Paris

 

         Michael Löwy e Olivier Besancenot criaram uma ficção política muito instigante: O caderno azul de Jenny: a visita de Marx à Comuna de Paris.[1]


Karl Marx nunca visitou a Comuna, estava em Londres e lá permaneceu durante o curto período em que o proletariado parisiense se revoltou e tomou o poder, entre os meses de março e maio de 1871. No entanto os autores conseguiram um modo muito convincente de fazer o autor d’O Manifesto Comunista dar uma volta pela cidade. Inventaram um diário escrito pela filha primogênita de Marx, Jenny, no qual ela narra essa inusitada viagem. Um caderno que ficou escondido num baú por mais de um século... Jenny convenceu o pai da empreitada (ela tinha um namorado na revolta, Charles Longuet), e lá se foram pai e filha, devidamente disfarçados.[2]

O disfarce era importante não só para despistar a polícia francesa, como para não prejudicar a Comuna, que sofria a falsa acusação de ser manipulada pelos comunistas da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Jacobinos e republicanos sociais eram os que davam as cartas na Comuna, os comunistas constituíam uma minoria, mas pesava sobre estes últimos a acusação de serem os verdadeiros chefes do movimento. O Governo de Thiers (que recém substituíra Napoleão III) propagandeava essa inverdade, no sentido de descaracterizar a autonomia dos revoltosos. Por isso os cuidados em despistar a polícia e os espiões.

Uma ficção bem urdida, muito instigante (ao menos para quem gosta da história do socialismo). Marx revê Paris (aonde chegou em 1843 e foi expulso dois anos depois) e constata as transformações que a cidade sofreu com as reformas de Haussmann (o homem que “construiu a Paris que conhecemos hoje”). Em determinado momento, ele e a filha estão na frente da Ópera Garnier ainda em construção, “escondida atrás de andaimes raquíticos”, com as obras paralisadas devido à guerra com a Prússia e depois com a revolução. Um local que já era conhecido como espaço de luxo (lugar de bistrôs e hotéis elegantes) e a respeito do qual Jenny comenta que o proletariado se apossou, mantendo o costume de se vestir “com aprumo antes de caminhar pelas calçadas”.

Marx e a filha dialogam com lideranças importantes da Comuna, com destaque para as figuras femininas, dado o papel fundamental das mulheres na revolta (apesar de impedidas de participar dos batalhões de combate). E, em relação a este envolvimento feminino na luta revolucionária, uma das lideranças, Louise Michel, assim explica o comportamento das mulheres: “elas agem de forma instintiva, não se deixando paralisar por cálculos políticos que desestimulam a espontaneidade imanente dos oprimidos”.

A Comuna foi massacrada pelas forças governistas e o número de mortos superou ao do Terror jacobino (durante a Revolução Francesa), mas isso o texto não aborda. Marx e Jenny se retiram antes. Para o leitor deste diário de viagem fica apenas o lado glorioso dessa outra faceta parisiense: “a Paris da classe trabalhadora, a do comunismo corporificado”. Cidade a respeito da qual Marx dizia que fora aonde ele nascera politicamente, ao ter contato com a tradição revolucionária francesa.



[1] LÖWY, Michael; BESANCENOT, Olivier. O caderno azul de Jenny: a visita d Marx à Comuna de Paris. Trad.: Fábio M. Querido. São Paulo: Boitempo, 2021. 120 p.

[2] Charles Longuet, namorado de Jenny, não é uma figura fictícia e realmente tinha uma relação com a moça. Eles se casaram no ano seguinte e tiveram seis filhos.

sábado, 22 de junho de 2024

Remando no mesmo barco

 

Esta é uma lembrança do início dos anos 80. Fui num armazém (naquela época, eu morava em Porto Alegre, no bairro Higienópolis), encontrei um vizinho e ele me convidou para um copinho de cachaça (um martelinho, como se dizia). Eu aceitei e ficamos conversando, encostados no balcão.

Meu vizinho era um professor de Matemática que eu conhecia do Centro dos Professores (CPERS), mais velho do que eu e calejado na luta política. Naquele mês nós nos encontráramos numa palestra em comemoração ao 8 de março (Dia Internacional da Mulher), e, ao final, saímos conversando sobre as desigualdades entre homens e mulheres e abordando os modelos de masculino e feminino, as relações amorosas entre homens e mulheres, e as possibilidades de mudança disso tudo.

Como morávamos no mesmo bairro, pegamos a mesma lotação e viemos papeando até a parada final (na frente do armazém que citei acima). Inexperiente que eu era (então recém-casado e ainda sem filhos), recordo que falara estar engajado nas pautas feministas e ele riu.

– Homem algum consegue isso – ele disse. – Aprendi na prática. Sempre há um momento de confronto com a mulher e ela te diz, na lata, que tu és machista e não tem jeito. Eu sou casado com uma mulher que age dessa maneira. Sempre está em combate comigo e eu aprendi que é assim que as coisas funcionam.

Quando o reencontrei no armazém e ele me convidou para beber cachaça, retomamos a conversa e ele falou:

– Minha mulher descascou em cima de mim. Me colocou no chinelo, bem como te disse outro dia. Ela falou com todas as letras que eu não a valorizo, que eu sou como todos os homens, humilho, agrido e assim por diante. Eu até fiquei pensando se um dia dei um tapa nela ou não. Acho que não.

Ele riu, se engasgou com a bebida, pediu mais outra cachaça e, com uma das mãos no meu ombro, disse muito seriamente:

– Não adianta nós querermos bancar os moderninhos e dizer que estamos alinhados com as pautas feministas. As mulheres não engolem isso. A minha, jamais. E vai se sentir humilhada & agredida até o fim da vida e eu que aprenda a lidar com isso.

Não recordo o resto da conversa. A lembrança é apenas a desta afirmativa desconsolada, amarga, a respeito das possibilidades de entendimento entre homens e mulheres. A compreensão de que a opressão masculina se encontra de tal modo entranhada na nossa cultura, moldando nossas identidades e relações, que não há jeito. Estamos presos nesse jogo.

Na época eu estava no meu primeiro casamento e não tinha uma compreensão clara do assunto. Existiam diferenças entre ela e eu, mais, jamais, a ponto de afirmar que vivíamos em pé de guerra. Conversávamos muito e acho que nos entendíamos. Mas o mundo girou, aquele casamento acabou, tive outros relacionamentos, e hoje entendo melhor o que meu colega dizia.

Sim, algumas mulheres vão sempre se sentir humilhadas & agredidas. Não já jeito. A cultura da supremacia masculina não terminou, mas a coisa é mais complicada que isso. Algumas mulheres viveram opressões terríveis (na infância ou seja lá quando) e jamais se libertarão disso. Não conseguem se reconstruírem e a pauleira continua. Mas algumas mulheres são diferentes, lidam com a figura masculina de outro modo e se desprendem desse estado de conflito, sei lá. Algumas mulheres.

Gostaria de dizer apenas isso ao meu colega, com o qual nunca mais retomei a conversa. Nós nos reencontramos em manifestações do Magistério (como no famoso acampamento da Praça da Matriz, em 1987), mas nunca com condições de retomarmos aquela prosa, daquele modo descontraído, no balcão de um armazém.

Sim, porque meus argumentos certamente só fazem sentido numa conversa de bar. Argumentos frágeis para um tema tão complexo. Tentativa de esboçar uma visão otimista quanto às relações entre homens e mulheres.

– Meu amigo, homens e mulheres não vivem sempre em pé de guerra, procurando vencer, dominar ou moldar um ao outro. Podem estar no mesmo barco, remando junto. Já vivi isso. Já vivi os dois casos. Dá pra apostar em relacionamentos melhores.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

A última favorita de Luís XV

 

Fui num sebo-café na Rua da República, em Porto Alegre, dias atrás, e sentei ao lado da estante de livros. Folhei o que estava mais perto, A última favorita: a maravilhosa aventura de madame Du Barry, e fiquei fascinado com o primeiro capítulo.[1]

Em 1768, uma jovem de 25 anos visita o Palácio de Versalhes com o ex-amante (para tratar de assuntos pecuniários com uma autoridade palaciana) e acaba indo assistir à refeição de Luís XV, então um viúvo melancólico de 58 anos. O rei encena a refeição ritual com enfado, nota a presença da moça (descrita como de extrema beleza) e deixa transparecer o seu encantamento.

Pronto, está armado o mote do livro: a relação dessa mulher, Jeanne de Vaubenier, com o rei. Saí do sebo-café com o livro debaixo do braço e o li com grande interesse, em especial quanto ao modo como a heroína (descrita com muita simpatia) encara a relação amorosa com o rei e menos com as intrigas palacianas (que ocupam mais da metade da narrativa).

Jeanne de Vaubenier era de “nascimento obscuro” (filha de uma cozinheira com um frade), “infância infeliz”, “juventude desamparada” e viveu em constante perigo devido a sua “beleza maravilhosa”. Aos vinte anos estabeleceu relação com o fidalgo Jean Du Barry e, mais do que tudo, se encantou com a proteção que ele lhe deu. O fidalgo cedo percebeu que a moça sentia “repugnância (...) por determinados favores” que ele lhe pedia e passou a tratá-la como uma irmã, preocupado com sua situação material e seu futuro. Quando ele foi procurado por membros da corte interessados em aproximar a moça do rei, prontamente se colocou como parte do ardil.

O rei costumava ter aventuras passageiras com mulheres plebeias, mas alguns aristocratas (interessados em terem uma pessoa próxima junto ao monarca) avaliaram que Jeanne era mulher diferenciada e apostaram numa relação mais sólida. Jeanne se conformou ao jogo e, para sua sorte (e dos seus benfeitores), a artimanha surtiu efeito. O rei, que a princípio viveu a experiência como “um delírio dos sentidos”, logo estabeleceu com ela “laços do coração e do espírito”. E ela, “subjugada (...) pela majestade real do amante”, logo descobriu que Luís XV, na intimidade, se despojava da persona real e se transformava “apenas no homem que ele era”.

Um romanção: a heroína de origem plebeia que conquista um coração real e, na sequência, boa parte da corte de Versalhes, a qual não admitia alguém de condição inferior galgar ao posto de amante oficial. Posição que ela conquistou no ano seguinte, após uma falsificação na sua documentação de nascimento e o casamento de conveniência com o Conde Du Barry (irmão do ex-amante).

Madame Du Barry (assim ela ficou conhecida na História) viveu com o rei praticamente até a sua morte (durante cinco anos) e a narrativa a apresenta como mulher
dócil, compreensiva em relação aos desejos e caprichos reais, e muito satisfeita nesta condição. Conquistou uma posição material privilegiada, soube gerir o seu dinheiro, manter boas relações e assim se manter. Às vezes se interrogava quanto a sua condição (“Estarei destinada a ser sempre amada e a não amar nunca?”), mas, quando se viu em situação de escolher (após a morte do rei), optou por outro amante poderoso. Uma plebeia fascinada pelo mundo aristocrata.

"Madame Du Barry" (1781), de Elisabeth Vigée Le Brun.
Fonte: Wikipédia.

Quando a revolução chegou às portas do palácio, Madame Du Barry claramente optou pelos monarquistas e auxiliou os aristocratas que fugiam e conspiravam contra as novas forças políticas. Tentou fazer um jogo com os revolucionários (mesmo depois de estabelecida a República), mas não obteve êxito. Apostou demais no seu taco e foi presa, condenada como traidora e guilhotinada no segundo ano da República (1793).

Na última cena do romance, o funcionário do Tribunal Revolucionário que registra as execuções assim anota a sua morte: “o cutelo da guilhotina caiu sobre o belo pescoço da Condessa Du Barry”.



[1] LAMBERT, André. A última favorita: a maravilhosa aventura da madame Du Barry. Belo Horizonte: Itatiaia, 1959. 304 p. Coleção “Grandes Mulheres na História”.

domingo, 16 de junho de 2024

O Fantasma da Ópera

 

Terminei de ler O Fantasma da Ópera, de Gaston Leroux, ambientado na Ópera Garnier, e lembrei, claro, da minha passagem por Paris, em 2019.[1] Estava numa excursão cultural com professores e alunos de uma universidade franciscana da minha cidade e, numa manhã, durante o café, uma professora sugeriu que fossemos visitar a Ópera Garnier (nome dado em homenagem ao arquiteto que a planejou), também conhecida como Ópera de Paris ou Academia Nacional de Música (nome que está escrito na fachada). Naquele dia, a nossa programação fora cancelado e alguns de nós toparam a ideia.

Pegamos o metrô e desembarcamos numa estação próxima ao teatro e a primeira visão do prédio foi de uma de suas laterais. Impressionante! Alguém foi se informar a respeito da visitação e soubemos que não estava aberto naquele dia ou naquele horário, não recordo mais. Contornamos o prédio, vimos a sua fachada e o deslumbramento foi total, sensação que compartilhamos com outros turistas que passavam pelo local. Uma festa! E então pude apreciar, pela primeira vez, a famosa escultura de Jean-Baptiste Carpeaux, “A dança”, representando um grupo de bailarinas nuas, bailando alegremente em torno de um rapaz igualmente nu. Uma peça que escandalizou a cidade, quando ali foi colocada, em 1869. Só dias depois soube que estava vendo uma cópia, pois visitei o Museu d’Orsay e encontrei a peça original, que fora retirada da fachada do prédio (na década de 1960) para protegê-la da poluição. Desde 1986, ela se encontra no d’Orsay.

"A dança", de Jean-Baptiste Carpeaux.
Cópia na fachada da Ópera Garnier.

Pois contornamos a famosa Ópera e fomos vê-la novamente do terraço das Galerias Lafayette, que ficam no entorno. (Pulo a parte relativa a essas galerias – point da moda parisiense, me explicaram, lugar de roupas caríssimas e de milionárias chinesas fazendo compras com malas de rodinhas –, pois é um capítulo a parte. Assunto para uma outra crônica.) No alto do terraço pude contemplar o teatro e conversei a respeito do Fantasma da Ópera, tendo como referência o filme de 2004, dirigido por Joel Schumacher, e também a peça (que assisti num teatro de São Paulo), ambos baseados num musical da Broadway, com canções belíssimas.

Mas naquele momento, no terraço das Galerias Lafayette, numa manhã cinzenta e fria de outono (fria como um dia de inverno, ao menos para nós, brasileiros), olhando a paisagem parisiense do alto, confesso que não conseguia juntar os pontos. Vivia o deslumbramento típico de turista que chega pela primeira vez a “Cidade Luz” (nome da cidade desde os tempos do Iluminismo, conforme os livros de História) e a lembrança que eu tenho é a de que eu era uma bobice só. Uma bobice boa de viver. Tinha um copo de café numa das mãos, bebia, tirava fotos, e lembrava vagamente do Fantasma, assim como de tantas outras histórias que aprendemos a respeito de Paris... Só agora (quase cinco anos depois) consigo fechar algumas dessas histórias.

Ópera Garnier (fundos) vista do terraço das Galerias Lafayette.

Sim, o Fantasma morava no interior da Ópera (segundo Gaston Leroux, o criador do personagem). Ele era um sujeito maligno, um homem de carne e osso, marcado por uma feiura atroz e por isso rejeitado até pelos pais. Nascera em Rouan e sua trajetória o levara a andar pela Europa, pelo Oriente Médio, desenvolvendo seus talentos como cantor e construtor (neste último caso, na Pérsia e na Turquia). Por fim voltou para a França, tornou-se empreiteiro e “apresentou uma proposta para o trabalho de fundação na Ópera” (p. 319). Construiu “um lar desconhecido do restante da terra” (incluindo um enorme lago) no subsolo do teatro, e ali se isolou dos “olhares dos homens”. Mas apaixonou-se por uma cantora lírica (Catherine Daaé) e é em torno dessa paixão que gira o romance. Ele a disputa com um jovem visconde e a esconde na sua morada subterrânea. O visconde vai atrás (com auxílio de um misterioso persa, antigo conhecido do Fantasma) e, por fim, a moça é libertada para fugir com o seu verdadeiro amor.

Não sei como li o romance até o final. Muito chato para o meu gosto. Mas valeu para fechar a história vivida no terraço das Galerias, quando me extasiei com a grandiosidade da Ópera Garnier e tentei lembrar as lendas criadas em torno da sua beleza e encantamento. Talvez um dia eu consiga visitar o seu interior...

Ópera Garnier (fachada principal).




[1] LEROUX, Gaston. O Fantasma da Ópera. Trad.: Andréia Alves. Janaína, SP: Principis, 2020. 320 p. O romance foi publicado em capítulos, pela primeira vez, entre 1909 e 1910. Pela indicação do personagem-narrador (um jornalista que investiga a veracidade a respeito do fantasma) a história se passa por volta de 1880.