sábado, 20 de julho de 2024

Conversa com motorista de aplicativo

 

Estava em Porto Alegre e acessei o aplicativo para chamar um carro para me levar ao shopping. Queria fazer uma refeição rápida e assistir a um filme. Entrei no veículo, o motorista estava com o verbo e começou dizendo que a vida não está fácil. Falou da inflação descontrolada, do preço dos alimentos e disse que o governo não está facilitando, pois o Lula fala o que não deve, mete os pés pelas mãos, é um desastre. Eu comentei que a inflação está abaixo das previsões e o Lula apenas rebate o alarmismo dos agentes do mercado. Enquanto isso o ministro da Fazenda, em total sintonia como Presidente, negocia com os representantes da classe patronal e busca atender as suas demandas.

– É jogo duro – conclui. – Difícil conciliar essas demandas do mercado com as necessidades dos trabalhadores.

Desconfiei que o homem era eleitor do Bolsonaro e utilizei palavras fora do usual para sinalizar que ele não estava conversando com um tonto. Imaginei que ele estava na faixa dos 70 anos (75 anos talvez) e perguntei se era motorista desde cedo.

– Não, tive comércio alguns anos. Uma loja de roupas, perdi tudo e fui para o táxi. Agora estou no aplicativo.

– Sempre aqui em Porto Alegre?

O homem respondeu que sempre trabalhou na região metropolitana, desfiou a sua vida e descobri que tínhamos a mesma idade: 68 anos. Ele era natural de Cachoeira, da zona rural, mas logo a família se mudou para a cidade e, aos trancos e barrancos, ele foi em frente. “Sem grandes confortos”, acentuou. Cursou um colégio comercial e acrescentou, com orgulho, que “naquele tempo os colégios formavam gente para o trabalho e não como hoje que deixam a gurizada sem saber fazer coisa alguma”. No final dos anos 70 estava em Alvorada e foi aí que abriu a sua loja.

Lembrei (mas não falei) que nesta mesma época (1978) comecei a lecionar num grupo escolar (Júlio César Ribeiro de Souza) logo na entrada de Alvorada. Uma escolinha de madeira que, mais tarde, foi reconstruída com material, prédios de dois pisos, uma modernização só (ao menos visto de longe).

O homem falou a respeito das dificuldades em manter um pequeno comércio numa cidade como Alvorada, observei o seu corpo castigado (se teve empregados, devia pegar parelho com eles, imaginei) e não disse a minha idade. Fiquei constrangido.

É isto: às vezes me constranjo com a minha origem na classe média (filho de pai bancário e mãe professora primária), que não viveu as agruras do campo, sempre morou no espaço urbano e teve acesso a comodidades e confortos. E, apesar de ter sido professor da rede estadual por mais de uma década, não vivi a precariedade da maioria dos brasileiros. Um privilegiado, de certa forma.

O homem me pareceu um trabalhador castigado pela vida e voltou à carga em relação ao governo petista.

– Não é desse jeito que se governa um país – ele falou.

Um bolsonarista, concluí, e me calei, sem ânimo de continuar a conversa. Fiquei olhando a cidade, a parte bonita de Porto Alegre (estava indo na direção do Shopping Bourbon Country), e lembrei que esta é uma cidade que passou por um desastre natural, em grande parte acentuado pelo negacionismo (alimentado pelo bolsonarismo) do grupo dirigente tanto no governo estadual quanto no municipal. Um negacionismo que ocasionou o relaxamento dos cuidados ambientais e do sistema de proteção de Porto Alegre em relação às cheias do Guaíba. Uma cidade que ainda tem marcas da enchente em algumas paredes, mas não na região do shopping em que eu desci para ir jantar e assistir a um filme.

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