sábado, 22 de junho de 2024

Remando no mesmo barco

 

Esta é uma lembrança do início dos anos 80. Fui num armazém (naquela época, eu morava em Porto Alegre, no bairro Higienópolis), encontrei um vizinho e ele me convidou para um copinho de cachaça (um martelinho, como se dizia). Eu aceitei e ficamos conversando, encostados no balcão.

Meu vizinho era um professor de Matemática que eu conhecia do Centro dos Professores (CPERS), mais velho do que eu e calejado na luta política. Naquele mês nós nos encontráramos numa palestra em comemoração ao 8 de março (Dia Internacional da Mulher), e, ao final, saímos conversando sobre as desigualdades entre homens e mulheres e abordando os modelos de masculino e feminino, as relações amorosas entre homens e mulheres, e as possibilidades de mudança disso tudo.

Como morávamos no mesmo bairro, pegamos a mesma lotação e viemos papeando até a parada final (na frente do armazém que citei acima). Inexperiente que eu era (então recém-casado e ainda sem filhos), recordo que falara estar engajado nas pautas feministas e ele riu.

– Homem algum consegue isso – ele disse. – Aprendi na prática. Sempre há um momento de confronto com a mulher e ela te diz, na lata, que tu és machista e não tem jeito. Eu sou casado com uma mulher que age dessa maneira. Sempre está em combate comigo e eu aprendi que é assim que as coisas funcionam.

Quando o reencontrei no armazém e ele me convidou para beber cachaça, retomamos a conversa e ele falou:

– Minha mulher descascou em cima de mim. Me colocou no chinelo, bem como te disse outro dia. Ela falou com todas as letras que eu não a valorizo, que eu sou como todos os homens, humilho, agrido e assim por diante. Eu até fiquei pensando se um dia dei um tapa nela ou não. Acho que não.

Ele riu, se engasgou com a bebida, pediu mais outra cachaça e, com uma das mãos no meu ombro, disse muito seriamente:

– Não adianta nós querermos bancar os moderninhos e dizer que estamos alinhados com as pautas feministas. As mulheres não engolem isso. A minha, jamais. E vai se sentir humilhada & agredida até o fim da vida e eu que aprenda a lidar com isso.

Não recordo o resto da conversa. A lembrança é apenas a desta afirmativa desconsolada, amarga, a respeito das possibilidades de entendimento entre homens e mulheres. A compreensão de que a opressão masculina se encontra de tal modo entranhada na nossa cultura, moldando nossas identidades e relações, que não há jeito. Estamos presos nesse jogo.

Na época eu estava no meu primeiro casamento e não tinha uma compreensão clara do assunto. Existiam diferenças entre ela e eu, mais, jamais, a ponto de afirmar que vivíamos em pé de guerra. Conversávamos muito e acho que nos entendíamos. Mas o mundo girou, aquele casamento acabou, tive outros relacionamentos, e hoje entendo melhor o que meu colega dizia.

Sim, algumas mulheres vão sempre se sentir humilhadas & agredidas. Não já jeito. A cultura da supremacia masculina não terminou, mas a coisa é mais complicada que isso. Algumas mulheres viveram opressões terríveis (na infância ou seja lá quando) e jamais se libertarão disso. Não conseguem se reconstruírem e a pauleira continua. Mas algumas mulheres são diferentes, lidam com a figura masculina de outro modo e se desprendem desse estado de conflito, sei lá. Algumas mulheres.

Gostaria de dizer apenas isso ao meu colega, com o qual nunca mais retomei a conversa. Nós nos reencontramos em manifestações do Magistério (como no famoso acampamento da Praça da Matriz, em 1987), mas nunca com condições de retomarmos aquela prosa, daquele modo descontraído, no balcão de um armazém.

Sim, porque meus argumentos certamente só fazem sentido numa conversa de bar. Argumentos frágeis para um tema tão complexo. Tentativa de esboçar uma visão otimista quanto às relações entre homens e mulheres.

– Meu amigo, homens e mulheres não vivem sempre em pé de guerra, procurando vencer, dominar ou moldar um ao outro. Podem estar no mesmo barco, remando junto. Já vivi isso. Já vivi os dois casos. Dá pra apostar em relacionamentos melhores.

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