Quando comecei a lecionar num grupo escolar de Alvorada, em 1978, recordo ter ouvido alguém dizer que eu “devia devolver à sociedade aquilo que ganhara gratuitamente na Universidade Federal”. Eu não achava que devesse coisa alguma, mas, ao mesmo tempo, sentia que devia fazer isso mesmo: lecionar para as crianças oriundas das classes populares, proporcionando a elas o que ganhara de mão beijada. Mas fiz isso mais por idealismo do que por sentimento de dívida, creio eu.
Alvorada era uma cidade dormitório da Região
Metropolitana de Porto Alegre (ainda é) e gostei de conhecer seu território e sua
população. Um grande aprendizado. A escola era constituída por prédios de
madeira (bem no estilo das antigas brizoletas) e apresentava sinais de degradação.
Algumas portas e janelas de sala de aula não fechavam direito, faltavam
trinques, fechaduras, os banheiros eram terríveis, e, certa vez, durante uma
Hora Cívica, o chão de cimento do corredor externo de um dos prédios cedeu (o que
abrigava as salas administrativas e o mastro para hastear a bandeira), o chão se
abriu aos pés dos alunos e alguns professores (entre eles, eu). A gurizada
rapidamente pulou, eu fiquei parado e acho que me agarrei numa pilastra e ninguém
se feriu.
Escola de condições precárias, com professoras e
funcionárias dedicadíssimas. Impressionante. Eu ganhara um contrato de 12 horas
por indicação de um político da Arena (amigo de minha mãe) e não escolhera a cidade
nem a escola. Caí nessa escolinha na entrada de Alvorada (Grupo Escolar Júlio
César Ribeiro de Souza) porque aí faltava professor e gostei muito. Era o que
eu queria para iniciar minha carreira e me dediquei.
Passado o tempo, os dois anos que lecionei nessa
escola são o que mais lembro do tempo que estive no Magistério Estadual.
Lecionava História do Brasil Colonial para meia dúzia de turmas de quinta série
do Primeiro Grau, das grandes navegações às revoltas nativistas, e tinha como
livro didático (que eu próprio escolhera) uma excelente História do Brasil, de
autoria de Luciano Ramos, publicada pela Companhia Editora Nacional.
Entrava na sala de aula de manhã cedo e no lado
oposto às janelas a luz não era boa e eu achava aquilo ruim. Um dia comentei
isso com a minha prima (Carmen Lúcia) e ela disse que “isso é bem Brasil” e que
eu estava conhecendo “a realidade da educação”. Grande número de alunos vinha de chinelos de dedos
e com pouco agasalho (mesmo no rigor do inverno) e isso me incomodava. Me olhava
bem calçado, com roupa quente, e certa má consciência me alfinetava por dentro.
Eu recebia meu salário na Caixa Econômica Estadual local (no centro de
Alvorada) e caminhar pela beira da estrada, ficar na fila, ouvir as conversas e
observar as pessoas eram tarefas do meu “mergulho na realidade social”.
E aprendia, aprendia sempre. Era meu “batismo de giz e quadro verde”. Tempo de descer do ônibus na beira da estrada, sentir a umidade que vinha dum arroio próximo, envolver-se numa névoa que ia se dissipando ao longo da manhã e esmerar-se no ensino da montagem do sistema colonial, com latifúndio, escravidão e monocultura, essas coisas. Vivências inesquecíveis. Se era o pagamento de uma dívida social o que fiz, valeu à pena. Pois ganhei muito mais do que paguei.
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