segunda-feira, 6 de março de 2023

Mundo arcaico, pré-capitalista

 

Minha atividade como professor iniciou em 1976, quando ainda era estudante de História. Um amigo (João Cavedini) lecionava numa escola particular de Cachoeirinha e me indicou. Mas só aguentei meio ano.[i] Tive dificuldade em enfrentar a gurizada das quintas e sextas séries do 1º Grau, situação agravada pelo fato de serem crianças que viviam num ambiente (o da região metropolitana de Porto Alegre) desconhecido por mim. A escola (um prédio de alvenaria inacabado) ficava numa área carente de infraestrutura urbana, a poucas quadras do poluidíssimo Rio Gravataí, e eu não sabia como era viver num ambiente degradado como aquele.

Em 1978, já formado, consegui um contrato numa escola estadual de Alvorada e, aí sim, passei na prova de fogo. Novamente estava trabalhando na região metropolitana, num grupo escolar originário das antigas brizoletas (três prédios de madeira em precárias condições de conservação), mas não esmoreci. Lecionava História do Brasil para as quintas séries, às vezes os alunos e eu não nos entendíamos, mas seguia em frente. Eu usava a palavra “operário” e um dia descobri que eles preferiam “industrialista”, pois o termo “operário” tinha algo de pejorativo. Ou industrialista representava uma categoria acima de operário, nunca entendi.

Procurei me ajustar à linguagem que eles utilizavam e não exagero ao dizer que me esbugalhava explicando cada termo que constava do programa: latifúndio, escravismo, monopólio, sistema colonial e absolutismo monárquico, por exemplo. E porque os livros falavam em operários e não em industrialistas para designar os trabalhadores das fábricas.

Às vezes eu achava que vinha de outro mundo, parava a aula e pedia para eles contarem a respeito das suas vidas. Eles puxavam as histórias mais escabrosas de violência – como a das cabeças decepadas que as quadrilhas em disputa deixavam no meio da rua – e riam da minha cara de espanto. “Que mundo era esse?”, eu me perguntava.[ii]

Entre 1980 e 83, fui trabalhar em Canoas, numa escola estadual entre os bairros Harmonia e Mathias Velho, e fiquei com a impressão de que meu diálogo com os alunos melhorara.[iii] Em parte porque eu estava mais experiente, outro tanto porque optara por abordagens mais tradicionais da História, com terminologia mais acessível.[iv]

O Paulo Freire da “educação dialógica” era uma referência fundamental e diversas vezes criei situações para os alunos falarem das suas realidades, de como viviam, na linguagem que conheciam. Eles patinavam no exercício dessa prática e eu também tinha minhas dificuldades. Muitos vinham do interior do Estado – da zona rural de Rio Pardo ou Dom Pedrito, da periferia de Caçapava ou Encruzilhada do Sul – e não ficava claro qual a situação socioeconômica em que viviam. Ao mesmo tempo, o meu aparelho conceitual não dava conta da realidade social na qual eles viviam. “Mas, afinal, o Rio Grande do Sul não vive um processo de modernização capitalista?”, eu me perguntava.[v]

Alguns contavam que suas famílias viviam há anos num determinado “campo” e eles não sabiam dizer se tinham sido proprietários ou não. “O pai saiu sem dinheiro nenhum”, explicavam. Ou então falavam que os pais trabalhavam para um fazendeiro e não ficava claro se recebiam um salário regular ou não. “Carteira assinada o pai não tinha não”, recordo um aluno contar (um rapazinho por volta dos 15 anos). Acho que para a maioria o trabalho formal ainda era uma realidade distante.

Conversando outro dia com a faxineira (cujo pai foi capataz em fazenda na região do atual município de Itaara) lembrei das histórias dos meus alunos. Ela contou que a mãe ia capinar no cemitério local, levava todos os filhos, e ninguém ganhava coisa alguma do patrão por conta disso. Era tarefa arrolada nos deveres do capataz. “O pai recebia um salário e a capina do cemitério cabia à mãe”, a faxineira explicou, “sem que ela ganhasse coisa alguma”.

Um mundo pré-capitalista ou pré-moderno, no jargão das Ciências Sociais. Um mundo arcaico, sem relações de trabalho regulamentadas e passíveis de fiscalização. As famílias dos meus alunos fugiam desse universo, considerado brutal por muitos de nós. Eu ouvia, anotava, e até hoje busco compreender.



[i] Escola Particular Nossa Senhora de Fátima.

[ii] Eu desconfiava de que os alunos estavam exagerando, mas fiz uma pesquisa nos jornais (na época) e encontrei a notícia sobre as cabeças decepadas.

[iii] Escola Estadual de 1º Grau Affonso Charlier, com construção datada do período do projeto PREMEN, fruto dos Acordos MEC-USAID, e realizada numa área de banhado, aterrada na década de 1960.

[iv] A substituição dos livros de História de Luciano Ramos (publicados pela Editora Brasil) pelos de Francisco M. P. Teixeira (Ed. Ática) certamente contribuíu para uma abordagem mais light.

[v] Em Triunfo, a poucos quilômetros de Canoas, estava em construção (desde 1976) o III Polo Petroquímico do país, visto como um empreendimento capaz de alavancar a indústria do RS. O Polo atraia trabalhadores de todo o Estado, muitos deles estabelecendo-se na Vila Mathias Velho (que ainda tinha áreas desabitadas – algumas delas invadidas de forma organizada a partir de 1979).

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