Minha atividade como professor iniciou em 1976,
quando ainda era estudante de História. Um amigo (João Cavedini) lecionava numa escola particular de
Cachoeirinha e me indicou. Mas só aguentei meio ano.[i]
Tive dificuldade em enfrentar a gurizada das quintas e sextas séries do 1º Grau,
situação agravada pelo fato de serem crianças que viviam num ambiente (o da
região metropolitana de Porto Alegre) desconhecido por mim. A escola (um prédio
de alvenaria inacabado) ficava numa área carente de infraestrutura urbana, a
poucas quadras do poluidíssimo Rio Gravataí, e eu não sabia como era viver num
ambiente degradado como aquele.
Em 1978, já formado, consegui um contrato numa
escola estadual de Alvorada e, aí sim, passei na prova de fogo. Novamente estava
trabalhando na região metropolitana, num grupo escolar originário das antigas
brizoletas (três prédios de madeira em precárias condições de conservação), mas não
esmoreci. Lecionava História do Brasil para as quintas séries, às vezes os
alunos e eu não nos entendíamos, mas seguia em frente. Eu usava a palavra “operário”
e um dia descobri que eles preferiam “industrialista”, pois o termo “operário”
tinha algo de pejorativo. Ou industrialista representava uma categoria acima de
operário, nunca entendi.
Procurei me ajustar à linguagem que eles utilizavam
e não exagero ao dizer que me esbugalhava explicando cada termo que constava do
programa: latifúndio, escravismo, monopólio, sistema colonial e absolutismo
monárquico, por exemplo. E porque os livros falavam em operários e não em
industrialistas para designar os trabalhadores das fábricas.
Às vezes eu achava que vinha de outro mundo, parava
a aula e pedia para eles contarem a respeito das suas vidas. Eles
puxavam as histórias mais escabrosas de violência – como a das cabeças
decepadas que as quadrilhas em disputa deixavam no meio da rua – e riam da
minha cara de espanto. “Que mundo era esse?”, eu me perguntava.[ii]
Entre 1980 e 83, fui trabalhar em Canoas, numa
escola estadual entre os bairros Harmonia e Mathias Velho, e fiquei com a
impressão de que meu diálogo com os alunos melhorara.[iii]
Em parte porque eu estava mais experiente, outro tanto porque optara por abordagens
mais tradicionais da História, com terminologia mais acessível.[iv]
O Paulo Freire da “educação dialógica” era uma
referência fundamental e diversas vezes criei situações para os alunos falarem
das suas realidades, de como viviam, na linguagem que conheciam. Eles patinavam
no exercício dessa prática e eu também tinha minhas dificuldades. Muitos vinham
do interior do Estado – da zona rural de Rio Pardo ou Dom Pedrito, da periferia
de Caçapava ou Encruzilhada do Sul – e não ficava claro qual a situação socioeconômica
em que viviam. Ao mesmo tempo, o meu aparelho conceitual não dava conta da
realidade social na qual eles viviam. “Mas, afinal, o Rio Grande do Sul não vive
um processo de modernização capitalista?”, eu me perguntava.[v]
Alguns contavam que suas famílias viviam há anos
num determinado “campo” e eles não sabiam dizer se tinham sido proprietários ou
não. “O pai saiu sem dinheiro nenhum”, explicavam. Ou então falavam que os pais
trabalhavam para um fazendeiro e não ficava claro se recebiam um salário
regular ou não. “Carteira assinada o pai não tinha não”, recordo um aluno
contar (um rapazinho por volta dos 15 anos). Acho que para a maioria o trabalho
formal ainda era uma realidade distante.
Conversando outro dia com a faxineira (cujo pai foi
capataz em fazenda na região do atual município de Itaara) lembrei das
histórias dos meus alunos. Ela contou que a mãe ia capinar no cemitério local,
levava todos os filhos, e ninguém ganhava coisa alguma do patrão por conta disso. Era tarefa
arrolada nos deveres do capataz. “O pai recebia um salário e a capina do
cemitério cabia à mãe”, a faxineira explicou, “sem que ela ganhasse coisa alguma”.
Um mundo pré-capitalista ou pré-moderno, no jargão
das Ciências Sociais. Um mundo arcaico, sem relações de trabalho regulamentadas
e passíveis de fiscalização. As famílias dos meus alunos fugiam desse universo,
considerado brutal por muitos de nós. Eu ouvia, anotava, e até hoje busco
compreender.
[i]
Escola Particular Nossa Senhora de Fátima.
[ii]
Eu desconfiava de que os alunos estavam exagerando, mas fiz uma pesquisa nos
jornais (na época) e encontrei a notícia sobre as cabeças decepadas.
[iii] Escola
Estadual de 1º Grau Affonso Charlier, com construção datada do período do
projeto PREMEN, fruto dos Acordos MEC-USAID, e realizada numa área de banhado,
aterrada na década de 1960.
[iv] A
substituição dos livros de História de Luciano Ramos (publicados pela Editora
Brasil) pelos de Francisco M. P. Teixeira (Ed. Ática) certamente contribuíu para uma abordagem mais light.
[v] Em
Triunfo, a poucos quilômetros de Canoas, estava em construção (desde 1976) o
III Polo Petroquímico do país, visto como um empreendimento capaz de alavancar
a indústria do RS. O Polo atraia trabalhadores de todo o Estado, muitos deles
estabelecendo-se na Vila Mathias Velho (que ainda tinha áreas desabitadas – algumas
delas invadidas de forma organizada a partir de 1979).
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