sexta-feira, 17 de março de 2023

Semana da Pátria

 

Foi em setembro de 1982, durante as festividades da Semana da Pátria. Eu lecionava numa escola estadual de Canoas, o desfile da juventude acontecia no Bairro Mathias Velho (na avenida principal, que era uma das poucas ruas asfaltadas no bairro, naquele tempo) e acompanhei os alunos. A gurizada formava dois ou três batalhões, coordenados pelos professores de Educação Física, e eu caminhava ao lado das turmas, dando apoio. Tarde de sol de primavera com alguma poeira no ar, e muita compenetração por parte dos estudantes.

Quando o desfile terminou, o professor de Técnicas Agrícolas, que dirigia um pequeno trator, me convidou a subir no reboque junto com alguns alunos para voltarmos para a escola.[i] As ruas eram de terra, o terreno irregular, e solavanco era o que não faltava. Isto exigia muito cuidado para não cair e boas gargalhadas também. O professor na direção sabia que eu não tinha prática nesse tipo de veículo e avisou os alunos:

– Cuidado com o professor Vítor que ele é da cidade.

Para mim, uma experiência inusitada. Um mergulho na realidade da periferia da região metropolitana (brutal aos olhos de um morador de bairro de classe média porto-alegrense, chocado com as valas abertas para o esgoto). Além dessa vivência numa realidade social desconhecida, a convivência fraterna com os alunos fora da sala de aula (o que sempre é enriquecedor para um professor).

Depois de chegarmos à escola, o professor de Técnicas Agrícolas e eu fomos tomar café na cantina. Ele era morador de Canoas, conhecia o bairro Mathias de ponta a ponta e pretendia se lançar na política partidária, em algum partido de esquerda.[ii]

A situação política local era muito rica e tanto existiam os militantes religiosos (sem vinculação partidária), que lideravam ousadas invasões de terras no “fundão da Mathias”, quanto a ação incisiva do Sindicato dos Metalúrgicos, atuando nos marcos da legalidade e presidido, então, por Paulo Paim, ainda sem filiação partidária naquela época. Segundo meu colega, petistas e pedetistas disputavam parelho a liderança entre os trabalhadores e logo o pessoal das invasões ia precisar se posicionar na política partidária. Ele ponderava qual partido com maior probabilidade de crescimento e êxito eleitoral e eu o escutava com atenção.

Não recordo em qual partido meu colega se filiou (PT, PDT ou algum outro) e nem se andei novamente no reboque do pequeno trator. Em maio de 1983 (após aprovação em Concurso Público) fui lecionar em Porto Alegre e aquela tarde de Semana da Pátria ficou como um quadro na “parede da memória”. O registro de uma vivência num bairro popular, na periferia de Porto Alegre, repleto de signos da trajetória de um professor: estudantes marchando, um passeio de trator com a gurizada e a tentativa de entender a reorganização da esquerda em partidos legais, "no processo de abertura do Regime Militar". Um bom assunto para lembrar e esmiuçar.



[i] A escola tinha origem no PREMEN e, apesar deste projeto ter sido desativado, mantinha a estrutura das disciplinas técnicas em funcionamento (Técnicas Agrícolas, Industriais, Comerciais e Domésticas), com os devidos equipamentos e máquinas, inclusive um pequeno trator. Um luxo, este trator, se eu pensar as escolas públicas que conheci.

[ii] Aprendi, com o tempo, a dizer “o Bairro Mathias Velho” (a partir dos estudos acadêmicos sobre a região), mas recordo que o comum era dizer “a Mathias”, a Vila Mathias Velho (provavelmente a sua designação original).

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