Foi em setembro de 1982, durante as festividades da
Semana da Pátria. Eu lecionava numa escola estadual de Canoas, o desfile da
juventude acontecia no Bairro Mathias Velho (na avenida principal, que era uma
das poucas ruas asfaltadas no bairro, naquele tempo) e acompanhei os alunos. A gurizada
formava dois ou três batalhões, coordenados pelos professores de Educação
Física, e eu caminhava ao lado das turmas, dando apoio. Tarde de sol de
primavera com alguma poeira no ar, e muita compenetração por parte dos
estudantes.
Quando o desfile terminou, o professor de Técnicas Agrícolas,
que dirigia um pequeno trator, me convidou a subir no reboque junto com alguns
alunos para voltarmos para a escola.[i]
As ruas eram de terra, o terreno irregular, e solavanco era o que não faltava. Isto
exigia muito cuidado para não cair e boas gargalhadas também. O professor na
direção sabia que eu não tinha prática nesse tipo de veículo e avisou os
alunos:
– Cuidado com o professor Vítor que ele é da
cidade.
Para mim, uma experiência inusitada. Um mergulho na
realidade da periferia da região metropolitana (brutal aos olhos de um morador
de bairro de classe média porto-alegrense, chocado com as valas abertas para o
esgoto). Além dessa vivência numa realidade social desconhecida, a convivência fraterna
com os alunos fora da sala de aula (o que sempre é enriquecedor para um professor).
Depois de chegarmos à escola, o professor de Técnicas
Agrícolas e eu fomos tomar café na cantina. Ele era
morador de Canoas, conhecia o bairro Mathias de ponta a ponta e pretendia se
lançar na política partidária, em algum partido de esquerda.[ii]
A situação política local era muito rica e tanto existiam
os militantes religiosos (sem vinculação partidária), que lideravam ousadas invasões
de terras no “fundão da Mathias”, quanto a ação incisiva do Sindicato dos
Metalúrgicos, atuando nos marcos da legalidade e presidido, então,
por Paulo Paim, ainda sem filiação partidária naquela época. Segundo meu
colega, petistas e pedetistas disputavam parelho a liderança entre os trabalhadores
e logo o pessoal das invasões ia precisar se posicionar na política partidária. Ele
ponderava qual partido com maior probabilidade de crescimento e êxito eleitoral
e eu o escutava com atenção.
Não recordo em qual partido meu colega se filiou (PT,
PDT ou algum outro) e nem se andei novamente no reboque do pequeno trator. Em maio
de 1983 (após aprovação em Concurso Público) fui lecionar em Porto Alegre e
aquela tarde de Semana da Pátria ficou como um quadro na “parede da memória”. O
registro de uma vivência num bairro popular, na periferia de Porto Alegre,
repleto de signos da trajetória de um professor: estudantes marchando, um
passeio de trator com a gurizada e a tentativa de entender a reorganização da
esquerda em partidos legais, "no processo de abertura do Regime Militar". Um bom assunto
para lembrar e esmiuçar.
[i] A escola
tinha origem no PREMEN e, apesar deste projeto ter sido desativado, mantinha a estrutura
das disciplinas técnicas em funcionamento (Técnicas Agrícolas, Industriais, Comerciais e Domésticas), com os devidos equipamentos e máquinas, inclusive um pequeno
trator. Um luxo, este trator, se eu pensar as escolas públicas que conheci.
[ii]
Aprendi, com o tempo, a dizer “o Bairro Mathias Velho” (a partir dos estudos
acadêmicos sobre a região), mas recordo que o comum era dizer “a Mathias”, a
Vila Mathias Velho (provavelmente a sua designação original).
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