Releio as últimas crônicas do blog (a respeito do
início da minha trajetória de professor) e percebo que falta definir melhor o
personagem que eu fui. Uma história não fica boa, se o personagem não é bem
apresentado.
Pois bem, esse professor era um jovem recém formado, magro, cabeludo e barbudo. Vestia calça
de brim, camiseta, e calçava tênis. No verão, sandálias franciscanas. Muitos usavam
bolsas de couro, mas ele sempre preferia as pastas. Não sei quando descobriu as
pastas com alças. Ou quando elas ficaram mais acessíveis e ele passou a usá-las.
O personagem nas areias da Praia Grande. Itapuã, Viamão / RS. |
Quanto ao universo mental, acho que a nota principal era a posição contrária “aos militares e a todas as formas de autoritarismo”, a começar pela “estrutura autoritária da tradicional família brasileira”. Anticapitalista, desconfiava do modelo soviético e apostava em possíveis reformas. Neste sentido, a criação do Sindicato Solidariedade configurou-se numa espécie de norte, isto é, uma esperança de democratização do sistema soviético ou algo assim.
Tinha uma admiração desbragada pela Revolução Cubana,
em especial quanto ao seu caráter anti-imperialista, mas fazia ressalvas quanto
ao modelo político (que, na verdade, não compreendia).[i]
Neste aspecto, o modo como o PT se construía, rompendo com a esquerda tradicional
(o PCB e o PCdoB) caia feito uma luva nas esperanças e ingenuidades do jovem professor. Um novo partido que era tema para discussões intermináveis.[ii]
Acho que isso dá o tom da cabeça desse personagem que pegava
o ônibus para Alvorada, de manhã cedo, e ia lecionar numa escolinha de madeira,
na beira da estrada, nos anos 1978 e 79.
Só fica faltando indicar o lugar do Catolicismo na sua formação. Afinal, ele foi coroinha quando guri (em Pelotas, na Igreja
do Sagrado Coração de Jesus) e, entre os 15 e 16 anos, integrante da juventude
católica (em Porto Alegre, na Igreja São Pedro). No último caso, teve um padre-orientador
que citava as resoluções da Conferência de Medelin (aquela da “opção
preferencial pelos pobres”), o que o colocou (sem nenhuma contrariedade) nos
marcos do Catolicismo reformado a partir do Concílio Vaticano II.
Apesar de ter rompido com a Igreja aos 17/18 anos, sua sensibilidade continuou profundamente católica e só se deu conta disso muito tempo depois. No entanto, volta e meia percebia que seu ateísmo era mais teórico do que qualquer outra coisa.[iii]
Em poucas linhas, penso que está aí o personagem
que eu era: um esquerdista de classe média, com tinturas católicas. Entrava em
sala de aula, pegava um pedaço de giz e não apenas colocava no quadro as características
da nossa formação social – a marca europeia dominante, o combate à população
indígena, a escravização de negros africanos – como se indignava com o nosso
passado histórico e sonhava com a “transformação radical” do nosso presente.
[i] Não
preciso dizer que fui mais um, entre os milhares, de jovens leitores de “A Ilha”,
livro reportagem de Fernando Morais a respeito de Cuba (Editora Alfa Omega,
1976).
[ii] Em 79, me integrei de modo informal ao Movimento de Emancipação dos Trabalhadores
(MEP) e, por meio dessa organização, participei de reuniões preparatórias do
Partido dos Trabalhadores (PT). Mas isso durou um ano. Logo me dei conta que
não tinha perfil para a militância partidária.
[iii] Em
1985 ou 6, ao final das aulas noturnas na Escola Ana Néri, me recordo de dizer
a um colega que “devíamos colaborar para a redenção da classe operária”. Ele riu e eu me dei conta: estava na cara a minha disposição religiosa, ainda.
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