Um dia, quando lecionava em Canoas, fui almoçar na
casa de dois alunos na Mathias Velho. Dois irmãos, um guri e uma guria, alunos
de séries diferentes (quinta e sexta, se não me engano) e muito pequenos,
menores que seus colegas da mesma idade (acho que sofriam de nanismo). Ele, com
um sorriso maroto e muito conversador; ela, com uns olhos de cachorrinho pidão
e tímida. Insistiram no convite diversas vezes, eu protelei o que pude, até que
não deu mais.
Eles moravam numa casa de madeira, erguida um pouco
acima do chão (três ou quatro degraus) para enfrentar a água das enchentes. A terra
era muito escura ao redor da casa e eles me mostraram a horta. Explicaram que a
terra não era boa, mas o pai e a mãe insistiam, pois “sempre foram de plantar”.
Depois apontaram para umas gaiolas pequenas, com alguns coelhos, e disseram que
a criação dos bichos era “invenção do pai”. Os animais, espremidos nas gaiolas,
pareciam assustados.
Não, eles não me serviram carne de coelho, naquele
dia. Os pais estavam “no serviço, na cidade”, eles próprios tinham preparado a
comida e colocaram as panelas com muito orgulho sobre a mesa. Acho que comemos
arroz e feijão, com verduras da horta, e eles falaram muito a respeito dos seus
planos de crescerem e fazerem sucesso na TV. Ela seria apresentadora de
noticiário de TV; ele, o jornalista que “escreveria as notícias”. Hoje, tenho a
impressão de que o motivo do convite era este: me perguntar se este sonho era
possível. Eles, filhos de uma família do campo, recém chegados ao mundo da
cidade, tinham chance de fazer sucesso na televisão? Menti com toda a delicadeza
que estava ao meu alcance.
– Sim, bastava estudar. A televisão estava crescendo.
Na verdade, os meios de comunicação em geral se expandiam, exigiam muitos
profissionais... Vai surgir uma oportunidade pra vocês.
De modo algum falei algo que murchasse a bola das
crianças. Pelo contrário. Eu cursara alguns semestres de Jornalismo, trabalhara
numa rádio de Porto Alegre e conhecia alguma coisa da área de Comunicações. Hoje,
acho que devo ter falado sobre isso na sala de aula e eles me pegaram para conferir.
Preconceituosamente ou não, achei os seus sonhos
mirabolantes. Mas quem vive no mundo escolar geralmente participa do ideário de
que “se a pessoa quer, basta estudar, se esforçar” e eu segui o roteiro.
Ao final da refeição, caminhamos juntos até a
escola e eles me pareciam felizes. Talvez eu dissera o que eles queriam ouvir e
o almoço fora um sucesso, do ponto de vista deles. Mas eu estava incomodado. Não
tinha sido honesto e não gostara. Sabia que professor é, muitas vezes, uma espécie
de ator de radionovela – “Está bem, Maria Augusta. Se isso que você deseja, farei
tudo para que dê certo.” –, mas eu ainda não estava conformado ao papel. No fundo,
queria ser o professor que “desenvolve o espírito crítico dos alunos”, uma
cantilena que me acompanhou por décadas.
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