A recente operação do Ministério do Trabalho e
Polícia Federal, resgatando pessoas que viviam em condições “análogas à
escravidão” em Bento Gonçalves, me recordou o poema “O açúcar”, de Ferreira
Gullar. Um poema que tematiza os trabalhadores nas usinas de Pernambuco e Rio
de Janeiro, na década de 1960:
“Em lugares distantes, onde não há hospital / nem
escola, / [vivem] homens que não sabem ler e morrem de fome / aos 27 anos / (...) / homens
de vida amarga / e dura.”[i]
Um poema que aborda a perpetuação de formas arcaicas
de exploração do trabalho e que eu utilizava nas minhas aulas de Educação Moral
e Cívica, entre 1980 e 1983.
Eu era professor de História numa escola estadual de
Canoas e, para completar a carga horária, lecionava Educação Moral e Cívica. Os
tempos duros do Regime Militar tinham arrefecido e essa disciplina não era mais
entregue a professores com posição política e ideológica afinada com o governo.
(Pelo menos foi isso que a diretora me disse, quando me designou para as aulas.)
Eu seguia o programa oficial (sim, abordava a Doutrina de Segurança Nacional), mas abria espaço para discutir a sociedade
brasileira e aí colocava o poema de Ferreira Gullar para abordar as condições dos
trabalhadores e a permanência de práticas teoricamente superadas pelo capitalismo
moderno.
A escola estava localizada entre os bairros
Harmonia e Mathias Velho, em Canoas, e o trabalho duro e a desigualdade social eram moedas correntes entre os alunos. Muitos deles, filhos
de homens e mulheres de vida amarga, saídos do mundo rural e em choque com o
mundo urbano-industrial da região metropolitana de Porto Alegre. Eu ouvia os alunos falarem a respeito (visitei a casa
de alguns) e aprendia com eles.
Alguns desses alunos moravam em terrenos invadidos
no Bairro Mathias Velho – invasões iniciadas em 1979 e que, na época, constituíam
uma novidade no horizonte das lutas sociais –, com infraestrutura precária, mas
com uma organização impressionante. (Lembro até hoje das ruas de terra simetricamente traçadas, as valas abertas, os canos de plásticos para a água, as casas de
madeira instaladas no meio de pequenos terrenos, tudo rigidamente planejado.) As ações eram
lideradas por religiosos informados pela Teologia da Libertação e resultaram nas
vilas Santo Operário e União dos Operários, as quais, anos mais tarde,
adquiriram boas condições de infraestrutura. (Visitei-as em 2012 e constatei isso.)
Pois ouvindo as notícias sobre os trabalhadores super-explorados em Bento Gonçalves, lembrei dos “homens de vida amarga” do poema de Gullar e das minhas aulas de Moral e Cívica... Naquele tempo (de revogação do AI-5, anistia e retorno ao multipartidarismo), eu era esperançoso quanto às possibilidades das relações de trabalho ingressarem num patamar mais civilizado. Hoje, nem sei mais o que dizer. O mundo é o que é. Ponto.
Até o momento em que escrevo essa crônica, mais de 200 trabalhadores foram resgatados. Eles eram contratados pela empresa Oliveira e Santana, trazidos da Bahia, e viviam em “situação inadequada de alojamento e de higiene”, servidos com “alimentação estragada” e tratados com “violência física” (praticada por meio de gás de pimenta inclusive). Trabalhavam na colheita de uvas para as empresas Salton, Aurora e Garibaldi, mas essas vinícolas já emitiram notas afirmando desconhecer o modo como a Oliveira e Santana tratava os trabalhadores e lavaram as mãos em relação à barbárie.
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