Nunca
participei de uma escavação arqueológica. Nunca trabalhei num desses buracos
que os arqueólogos fazem e meticulosamente examinam centímetro por centímetro,
recolhendo material. Mas já tive em mãos cacos de cerâmica guarani, pedras afiadas
de machados e de raspadores indígenas, assim como pedaços de louça inglesa, de garrafas
de vidro (do século XIX) e botões de fardamento militar (dos mortos na Batalha
do Passo do Rosário, em 1828), material recolhido por arqueólogos em suas escavações,
a maioria deles do LEPA (Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas, da
UFSM).
Era meu
roteiro, por sinal, visitar as instalações desse laboratório (quando localizado
nos fundos da Antiga Reitoria) e ouvir o professor Saul Milder ou seus alunos
falarem a respeito das peças. Um dia, acompanhei uma das turmas do Saul até às
ruínas de São Miguel das Missões e visitei um local de antiga escavação na área
onde se localizavam as oficinas criadas e dirigidas pelos jesuítas. O prof.
Saul havia participado do projeto e explicou como fora o trabalho. Foi o mais
perto que cheguei de um poço de escavação.
Mas, de
certa maneira, me considero um arqueólogo. Ao meu modo, escavo profundos poços
no lado esquerdo do peito e furungo em busca de vestígios do passado. Às vezes
encontro algo que valha à pena, nem sempre um objeto bem configurado, mas algo
difuso que vou elaborando por dias e dias (limpando, limpando) até que a “peça”
ganha uma forma.
Dessa vez
o que encontrei foi “a voz da minha mãe”. Isto mesmo, a voz, pois me deparei
com a lembrança dos seus comentários a respeito do “Monumento às Mães”, uma
escultura de Antônio Caringi, colocada na Praça Coronel Pedro Osório, em
Pelotas, no final da década de 1960. A escultura causou um impacto muito grande
e recordo de tê-la visto na época (num daqueles passeios de família que meu pai
e minha mãe gostavam de fazer com os filhos). A mãe conhecera a modelo (Noemi
Caringi, esposa do escultor) e fora sua aluna no Conservatório de Música.
Na cena
lembrada, a mãe recorda as qualidades da modelo (mulher elegante, poetisa e professora
de música), relembra os tempos de estudante do Conservatório e diz:
– Eu era
uma péssima aluna, sem aptidão nenhuma para a música. Estudava piano e não
tocava nada. Teu tio, sim, tinha talento. Sem nunca ter estudado, sentava ao
piano e tocava de ouvido.
Minha mãe
dizia isso rindo, aparentemente se desqualificando. Mas ela tinha talentos e
sabia disso. Numa das placas que havia na base do monumento estava escrito a
seguinte frase: “São as mãos das mães que sustentam o futuro do mundo.” E essas
mãos – firmes e delicadas (como evidenciam a escultura) – ela sabia que tinha.
– Sempre quis
ser mãe de cinco rapazes – ela falava. – Tive três e foi bom assim.
Ouvi isso várias vezes. “Três filhos únicos”, brincavam as sobrinhas e noras. Eu a relembro falar a respeito da escultura do Caringi e me emociono. É como se eu estivesse no fundo de poço de escavação arqueológica e encontrasse uma preciosidade: um pote de cerâmica guarani ricamente decorado pelas mãos de uma índia que não vejo, apenas sinto e escuto a voz.
Monumento às Mães. Foto da Wikipédia, estranhamente sem a segunda placa, com a frase relativas às mães. |
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