sábado, 17 de setembro de 2022

Monumento às Mães

 

Nunca participei de uma escavação arqueológica. Nunca trabalhei num desses buracos que os arqueólogos fazem e meticulosamente examinam centímetro por centímetro, recolhendo material. Mas já tive em mãos cacos de cerâmica guarani, pedras afiadas de machados e de raspadores indígenas, assim como pedaços de louça inglesa, de garrafas de vidro (do século XIX) e botões de fardamento militar (dos mortos na Batalha do Passo do Rosário, em 1828), material recolhido por arqueólogos em suas escavações, a maioria deles do LEPA (Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas, da UFSM).

Era meu roteiro, por sinal, visitar as instalações desse laboratório (quando localizado nos fundos da Antiga Reitoria) e ouvir o professor Saul Milder ou seus alunos falarem a respeito das peças. Um dia, acompanhei uma das turmas do Saul até às ruínas de São Miguel das Missões e visitei um local de antiga escavação na área onde se localizavam as oficinas criadas e dirigidas pelos jesuítas. O prof. Saul havia participado do projeto e explicou como fora o trabalho. Foi o mais perto que cheguei de um poço de escavação.

Mas, de certa maneira, me considero um arqueólogo. Ao meu modo, escavo profundos poços no lado esquerdo do peito e furungo em busca de vestígios do passado. Às vezes encontro algo que valha à pena, nem sempre um objeto bem configurado, mas algo difuso que vou elaborando por dias e dias (limpando, limpando) até que a “peça” ganha uma forma.

Dessa vez o que encontrei foi “a voz da minha mãe”. Isto mesmo, a voz, pois me deparei com a lembrança dos seus comentários a respeito do “Monumento às Mães”, uma escultura de Antônio Caringi, colocada na Praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas, no final da década de 1960. A escultura causou um impacto muito grande e recordo de tê-la visto na época (num daqueles passeios de família que meu pai e minha mãe gostavam de fazer com os filhos). A mãe conhecera a modelo (Noemi Caringi, esposa do escultor) e fora sua aluna no Conservatório de Música.

Na cena lembrada, a mãe recorda as qualidades da modelo (mulher elegante, poetisa e professora de música), relembra os tempos de estudante do Conservatório e diz:

– Eu era uma péssima aluna, sem aptidão nenhuma para a música. Estudava piano e não tocava nada. Teu tio, sim, tinha talento. Sem nunca ter estudado, sentava ao piano e tocava de ouvido.

Minha mãe dizia isso rindo, aparentemente se desqualificando. Mas ela tinha talentos e sabia disso. Numa das placas que havia na base do monumento estava escrito a seguinte frase: “São as mãos das mães que sustentam o futuro do mundo.” E essas mãos – firmes e delicadas (como evidenciam a escultura) – ela sabia que tinha.

– Sempre quis ser mãe de cinco rapazes – ela falava. – Tive três e foi bom assim.

Ouvi isso várias vezes. “Três filhos únicos”, brincavam as sobrinhas e noras. Eu a relembro falar a respeito da escultura do Caringi e me emociono. É como se eu estivesse no fundo de poço de escavação arqueológica e encontrasse uma preciosidade: um pote de cerâmica guarani ricamente decorado pelas mãos de uma índia que não vejo, apenas sinto e escuto a voz.

Monumento às Mães. Foto da Wikipédia, estranhamente sem
a segunda placa, com a frase relativas às mães.


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