domingo, 4 de setembro de 2022

Conversa sobre o mundo acadêmico

Décadas atrás, bastava o título de graduação para o sujeito se tornar professor universitário. Cursos de pós-graduação e títulos de mestre e doutor vinham com o andar da carruagem, isto é, caso o professor tivesse alguma ideia original e condições para desenvolvê-la. Caso contrário, era possível fazer carreira nas universidades federais sem investir na qualificação acadêmica.

Ao longo da década de 1980, no entanto, isso mudou. A partir de então, a pós-graduação passou a ser uma exigência para inscrição em concurso e, para os professores já efetivados, uma espécie de pressão. Se o sujeito almejasse ascender na carreira e ter salário melhor, a qualificação acadêmica era indispensável.

Creio que vivi essa mudança.

No concurso que prestei para o Departamento de História da UFSM, em 1989, não constava a exigência de título de pós-graduação e isso já não era comum na época. Foi o que possibilitou a minha inscrição. Um amigo (Ricardo Napoli) leu o edital do concurso na Zero Hora, lembrou da minha penúria no Magistério Estadual e me ligou. Eu fui na mesma hora comprar o jornal e comecei a estudar naquela noite. Animação total.

Prestei concurso, fiquei em quarto lugar e soube que, apesar do edital ser apenas para duas vagas, os terceiro, quarto e quinto candidatos aprovados seriam aproveitados. Três professores do departamento estavam aguardando aposentadoria e entraríamos nas suas vagas. Fernando Collor, no entanto, tomou posse como Presidente da República no ano seguinte (1990), embaralhou a vida dos funcionários federais e os três professores suspenderam as aposentadorias. Esperaram mais um ano e, por pouco, o concurso não dançou.

Concursos em universidades federais têm validade de um ano e, se não são renovados, caducam. Isso só não aconteceu porque um professor (Teófilo Torronteguy) encaminhou pedido de renovação do concurso. Um “detalhe” que eu sequer soube na época.

Lembrei dessas histórias nessa semana, quando fui convidado para palestrar uma faculdade local (FAPAS) a respeito do tema de minha tese de doutorado: O Catolicismo Ultramontano e a conquista de Santa Maria. Entre tantas coisas, recordei que já tive planos de me tornar um andarilho como alguns personagens de Hermann Hesse. Um andarilho como Goldmund, do romance Narciso e Goldmund, ambientado na Europa medieval. Goldumund não se adequa ao ambiente do mosteiro, o lugar do conhecimento naquele tempo, e sai a andar pelo mundo em busca de saberes, da arte inclusive e também do amor.

Uma fantasia juvenil, claro, que felizmente não realizei. Me diplomei, encarei o Magistério Estadual e me submeti ao regramento do mundo – buscar o conhecimento nos marcos da academia, no caso. Quando tive oportunidade, prestei concurso para lecionar em universidade e fiz o que manda o figurino. Deu certo.

Com meu colega Luiz Eugênio Véscio (nós dois aprovados no mesmo concurso), na sala que dividíamos na UFSM, conversávamos a respeito das nossas trajetórias e eu contava que tivera a fantasia de ser andarilho. Luiz Eugênio ria muito. Gargalhava. Juntos, nós concluímos nossas dissertações de mestrado e, na sequência, procuramos ideias que nos possibilitassem ingressar no doutorado.

Antigo Prédio de Apoio da UFSM. Local onde funcionava
o Depto. de História na década de 1990. Foto de 2022.

Não foi um caminho fácil. Luiz Eugênio construiu sua tese a partir da morte de um padre na região de colonização italiana – supostamente agredido por maçons, no ano de 1900.[1] Eu bispei que o filão era rico – a história da Igreja Católica e suas transformações no final do século XIX – e por aí construí o meu projeto de doutorado.[2]

       Estávamos mergulhados na vida acadêmica dos anos 90, sentíamos a pressão para nos qualificarmos e procuramos responder a isso. Lemos muito, batemos ponto em arquivos eclesiásticos, tivemos boas conversas entre nós e também com diversos religiosos – inclusive com D. Ivo Lorscheiter, então bispo de Santa Maria, que me deu carta verde para pesquisar em alguns arquivos. Lembrei disso ao iniciar a palestra.


[1] Padre Antônio Sório foi um dos primeiros sacerdotes a atuar na 4ª Colônia de Imigração Italiana, no RGS. Teve conflitos com os colonos da região, vindo a ser agredido por um grupo e falecendo por conta dos ferimentos. Alguns dizem que os agressores eram maçons contrários à Igreja; outros, que eram familiares de uma moça que perdera a virgindade com o padre.

[2] No século XIX, a Igreja Católica passou por transformações devido à adoção do Ultramontanismo (Concílio Vaticano I, 1869-70). Isso implicou em reformas internas e novas relações com os leigos, inclusive no RGS, na cidade de Santa Maria (foco do meu estudo, no período de 1870 a 1920).

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