– Assim tu não vais ser feliz – disse a moça ao celular, no corredor do shopping, e não ouvi a continuação da conversa. Com uma mão ela segurava o aparelho junto ao ouvido, com a outra ela gesticulava, andando a passos lentos junto às vitrines das lojas. Nós cruzamos um pelo outro e aquela frase ficou ecoando dentro de mim.
O que será que o seu interlocutor fazia que não
colaborava na construção da felicidade?, pensei. Mas quem entende dessas coisas?
Ontem de noite eu atravessei a praça central da cidade, praticamente vazia, e
de repente vi passar um catador puxando o seu carrinho e uma criança ao lado,
pulando e gritando. Uma criança feliz, me pareceu.
Praça Saldanha Marinho. |
Recordei a faxineira do meu prédio me contando a
respeito da sua infância, na década de 1980, quando ajudava a mãe a catar ferro
velho e ossos nas ruas da cidade. Elas catavam ossos no lixo e nem imaginava
que isso pudesse ter alguma utilidade...
Será que entendi direito? Ossos? Mas tive vergonha
de perguntar à faxineira e fiquei calado no corredor do prédio, escutando.
– E graças a Deus nós
conseguíamos nos manter – ela acrescentava.
Ontem de noite atravessei a praça
central da cidade, vindo do bar – onde me encontrei com os amigos, bebi vinho e
falei de literatura, dos autores que andamos lendo: Peter Handke, Josué
Guimarães, Luiz Vilela, Andrea Camilleri – e aqueles catadores (pai e filho,
provavelmente) me indicaram um mundo desconhecido.
A moça que ainda pouco cruzou comigo no shopping
estava destrinchando algum manual de felicidade e também me
pareceu distante. Seus passos eram lentos, toda a sua atenção estava no celular
e senti alguma gravidade naquela conversa.
Eu tomei um café com croissant numa lanchonete, folhei
meu roteiro de viagem pela Turquia (para onde embarco daqui a uma semana) e li
sobre dois castelos construídos nas margens do Estreito de Bósforo por turcos
otomanos, quando eles se preparavam para conquistar Constantinopla. Construções dos
sultões Yildrim Beyazit e Mehmet II.
No final da década de 1970 comecei a lecionar no
Ensino de 1º Grau e todos os anos eu falava a respeito da queda de
Constantinopla (1453), as mudanças que isso causou no comércio europeu e o
quanto essa nova conjuntura motivou os portugueses a buscarem um novo caminho
para as Índias. Eu dependurava um mapa-múndi na frente do quadro verde e
apontava os locais desse mundo distante: Constantinopla, Lisboa, Calcutá. Os
olhos dos alunos brilhavam e os do professor também. Acho que juntos
desvendávamos aquele universo.
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