domingo, 23 de junho de 2024

A Comuna de Paris

 

         Michael Löwy e Olivier Besancenot criaram uma ficção política muito instigante: O caderno azul de Jenny: a visita de Marx à Comuna de Paris.[1]


Karl Marx nunca visitou a Comuna, estava em Londres e lá permaneceu durante o curto período em que o proletariado parisiense se revoltou e tomou o poder, entre os meses de março e maio de 1871. No entanto os autores conseguiram um modo muito convincente de fazer o autor d’O Manifesto Comunista dar uma volta pela cidade. Inventaram um diário escrito pela filha primogênita de Marx, Jenny, no qual ela narra essa inusitada viagem. Um caderno que ficou escondido num baú por mais de um século... Jenny convenceu o pai da empreitada (ela tinha um namorado na revolta, Charles Longuet), e lá se foram pai e filha, devidamente disfarçados.[2]

O disfarce era importante não só para despistar a polícia francesa, como para não prejudicar a Comuna, que sofria a falsa acusação de ser manipulada pelos comunistas da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Jacobinos e republicanos sociais eram os que davam as cartas na Comuna, os comunistas constituíam uma minoria, mas pesava sobre estes últimos a acusação de serem os verdadeiros chefes do movimento. O Governo de Thiers (que recém substituíra Napoleão III) propagandeava essa inverdade, no sentido de descaracterizar a autonomia dos revoltosos. Por isso os cuidados em despistar a polícia e os espiões.

Uma ficção bem urdida, muito instigante (ao menos para quem gosta da história do socialismo). Marx revê Paris (aonde chegou em 1843 e foi expulso dois anos depois) e constata as transformações que a cidade sofreu com as reformas de Haussmann (o homem que “construiu a Paris que conhecemos hoje”). Em determinado momento, ele e a filha estão na frente da Ópera Garnier ainda em construção, “escondida atrás de andaimes raquíticos”, com as obras paralisadas devido à guerra com a Prússia e depois com a revolução. Um local que já era conhecido como espaço de luxo (lugar de bistrôs e hotéis elegantes) e a respeito do qual Jenny comenta que o proletariado se apossou, mantendo o costume de se vestir “com aprumo antes de caminhar pelas calçadas”.

Marx e a filha dialogam com lideranças importantes da Comuna, com destaque para as figuras femininas, dado o papel fundamental das mulheres na revolta (apesar de impedidas de participar dos batalhões de combate). E, em relação a este envolvimento feminino na luta revolucionária, uma das lideranças, Louise Michel, assim explica o comportamento das mulheres: “elas agem de forma instintiva, não se deixando paralisar por cálculos políticos que desestimulam a espontaneidade imanente dos oprimidos”.

A Comuna foi massacrada pelas forças governistas e o número de mortos superou ao do Terror jacobino (durante a Revolução Francesa), mas isso o texto não aborda. Marx e Jenny se retiram antes. Para o leitor deste diário de viagem fica apenas o lado glorioso dessa outra faceta parisiense: “a Paris da classe trabalhadora, a do comunismo corporificado”. Cidade a respeito da qual Marx dizia que fora aonde ele nascera politicamente, ao ter contato com a tradição revolucionária francesa.



[1] LÖWY, Michael; BESANCENOT, Olivier. O caderno azul de Jenny: a visita d Marx à Comuna de Paris. Trad.: Fábio M. Querido. São Paulo: Boitempo, 2021. 120 p.

[2] Charles Longuet, namorado de Jenny, não é uma figura fictícia e realmente tinha uma relação com a moça. Eles se casaram no ano seguinte e tiveram seis filhos.

sábado, 22 de junho de 2024

Remando no mesmo barco

 

Esta é uma lembrança do início dos anos 80. Fui num armazém (naquela época, eu morava em Porto Alegre, no bairro Higienópolis), encontrei um vizinho e ele me convidou para um copinho de cachaça (um martelinho, como se dizia). Eu aceitei e ficamos conversando, encostados no balcão.

Meu vizinho era um professor de Matemática que eu conhecia do Centro dos Professores (CPERS), mais velho do que eu e calejado na luta política. Naquele mês nós nos encontráramos numa palestra em comemoração ao 8 de março (Dia Internacional da Mulher), e, ao final, saímos conversando sobre as desigualdades entre homens e mulheres e abordando os modelos de masculino e feminino, as relações amorosas entre homens e mulheres, e as possibilidades de mudança disso tudo.

Como morávamos no mesmo bairro, pegamos a mesma lotação e viemos papeando até a parada final (na frente do armazém que citei acima). Inexperiente que eu era (então recém-casado e ainda sem filhos), recordo que falara estar engajado nas pautas feministas e ele riu.

– Homem algum consegue isso – ele disse. – Aprendi na prática. Sempre há um momento de confronto com a mulher e ela te diz, na lata, que tu és machista e não tem jeito. Eu sou casado com uma mulher que age dessa maneira. Sempre está em combate comigo e eu aprendi que é assim que as coisas funcionam.

Quando o reencontrei no armazém e ele me convidou para beber cachaça, retomamos a conversa e ele falou:

– Minha mulher descascou em cima de mim. Me colocou no chinelo, bem como te disse outro dia. Ela falou com todas as letras que eu não a valorizo, que eu sou como todos os homens, humilho, agrido e assim por diante. Eu até fiquei pensando se um dia dei um tapa nela ou não. Acho que não.

Ele riu, se engasgou com a bebida, pediu mais outra cachaça e, com uma das mãos no meu ombro, disse muito seriamente:

– Não adianta nós querermos bancar os moderninhos e dizer que estamos alinhados com as pautas feministas. As mulheres não engolem isso. A minha, jamais. E vai se sentir humilhada & agredida até o fim da vida e eu que aprenda a lidar com isso.

Não recordo o resto da conversa. A lembrança é apenas a desta afirmativa desconsolada, amarga, a respeito das possibilidades de entendimento entre homens e mulheres. A compreensão de que a opressão masculina se encontra de tal modo entranhada na nossa cultura, moldando nossas identidades e relações, que não há jeito. Estamos presos nesse jogo.

Na época eu estava no meu primeiro casamento e não tinha uma compreensão clara do assunto. Existiam diferenças entre ela e eu, mais, jamais, a ponto de afirmar que vivíamos em pé de guerra. Conversávamos muito e acho que nos entendíamos. Mas o mundo girou, aquele casamento acabou, tive outros relacionamentos, e hoje entendo melhor o que meu colega dizia.

Sim, algumas mulheres vão sempre se sentir humilhadas & agredidas. Não já jeito. A cultura da supremacia masculina não terminou, mas a coisa é mais complicada que isso. Algumas mulheres viveram opressões terríveis (na infância ou seja lá quando) e jamais se libertarão disso. Não conseguem se reconstruírem e a pauleira continua. Mas algumas mulheres são diferentes, lidam com a figura masculina de outro modo e se desprendem desse estado de conflito, sei lá. Algumas mulheres.

Gostaria de dizer apenas isso ao meu colega, com o qual nunca mais retomei a conversa. Nós nos reencontramos em manifestações do Magistério (como no famoso acampamento da Praça da Matriz, em 1987), mas nunca com condições de retomarmos aquela prosa, daquele modo descontraído, no balcão de um armazém.

Sim, porque meus argumentos certamente só fazem sentido numa conversa de bar. Argumentos frágeis para um tema tão complexo. Tentativa de esboçar uma visão otimista quanto às relações entre homens e mulheres.

– Meu amigo, homens e mulheres não vivem sempre em pé de guerra, procurando vencer, dominar ou moldar um ao outro. Podem estar no mesmo barco, remando junto. Já vivi isso. Já vivi os dois casos. Dá pra apostar em relacionamentos melhores.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

A última favorita de Luís XV

 

Fui num sebo-café na Rua da República, em Porto Alegre, dias atrás, e sentei ao lado da estante de livros. Folhei o que estava mais perto, A última favorita: a maravilhosa aventura de madame Du Barry, e fiquei fascinado com o primeiro capítulo.[1]

Em 1768, uma jovem de 25 anos visita o Palácio de Versalhes com o ex-amante (para tratar de assuntos pecuniários com uma autoridade palaciana) e acaba indo assistir à refeição de Luís XV, então um viúvo melancólico de 58 anos. O rei encena a refeição ritual com enfado, nota a presença da moça (descrita como de extrema beleza) e deixa transparecer o seu encantamento.

Pronto, está armado o mote do livro: a relação dessa mulher, Jeanne de Vaubenier, com o rei. Saí do sebo-café com o livro debaixo do braço e o li com grande interesse, em especial quanto ao modo como a heroína (descrita com muita simpatia) encara a relação amorosa com o rei e menos com as intrigas palacianas (que ocupam mais da metade da narrativa).

Jeanne de Vaubenier era de “nascimento obscuro” (filha de uma cozinheira com um frade), “infância infeliz”, “juventude desamparada” e viveu em constante perigo devido a sua “beleza maravilhosa”. Aos vinte anos estabeleceu relação com o fidalgo Jean Du Barry e, mais do que tudo, se encantou com a proteção que ele lhe deu. O fidalgo cedo percebeu que a moça sentia “repugnância (...) por determinados favores” que ele lhe pedia e passou a tratá-la como uma irmã, preocupado com sua situação material e seu futuro. Quando ele foi procurado por membros da corte interessados em aproximar a moça do rei, prontamente se colocou como parte do ardil.

O rei costumava ter aventuras passageiras com mulheres plebeias, mas alguns aristocratas (interessados em terem uma pessoa próxima junto ao monarca) avaliaram que Jeanne era mulher diferenciada e apostaram numa relação mais sólida. Jeanne se conformou ao jogo e, para sua sorte (e dos seus benfeitores), a artimanha surtiu efeito. O rei, que a princípio viveu a experiência como “um delírio dos sentidos”, logo estabeleceu com ela “laços do coração e do espírito”. E ela, “subjugada (...) pela majestade real do amante”, logo descobriu que Luís XV, na intimidade, se despojava da persona real e se transformava “apenas no homem que ele era”.

Um romanção: a heroína de origem plebeia que conquista um coração real e, na sequência, boa parte da corte de Versalhes, a qual não admitia alguém de condição inferior galgar ao posto de amante oficial. Posição que ela conquistou no ano seguinte, após uma falsificação na sua documentação de nascimento e o casamento de conveniência com o Conde Du Barry (irmão do ex-amante).

Madame Du Barry (assim ela ficou conhecida na História) viveu com o rei praticamente até a sua morte (durante cinco anos) e a narrativa a apresenta como mulher
dócil, compreensiva em relação aos desejos e caprichos reais, e muito satisfeita nesta condição. Conquistou uma posição material privilegiada, soube gerir o seu dinheiro, manter boas relações e assim se manter. Às vezes se interrogava quanto a sua condição (“Estarei destinada a ser sempre amada e a não amar nunca?”), mas, quando se viu em situação de escolher (após a morte do rei), optou por outro amante poderoso. Uma plebeia fascinada pelo mundo aristocrata.

"Madame Du Barry" (1781), de Elisabeth Vigée Le Brun.
Fonte: Wikipédia.

Quando a revolução chegou às portas do palácio, Madame Du Barry claramente optou pelos monarquistas e auxiliou os aristocratas que fugiam e conspiravam contra as novas forças políticas. Tentou fazer um jogo com os revolucionários (mesmo depois de estabelecida a República), mas não obteve êxito. Apostou demais no seu taco e foi presa, condenada como traidora e guilhotinada no segundo ano da República (1793).

Na última cena do romance, o funcionário do Tribunal Revolucionário que registra as execuções assim anota a sua morte: “o cutelo da guilhotina caiu sobre o belo pescoço da Condessa Du Barry”.



[1] LAMBERT, André. A última favorita: a maravilhosa aventura da madame Du Barry. Belo Horizonte: Itatiaia, 1959. 304 p. Coleção “Grandes Mulheres na História”.

domingo, 16 de junho de 2024

O Fantasma da Ópera

 

Terminei de ler O Fantasma da Ópera, de Gaston Leroux, ambientado na Ópera Garnier, e lembrei, claro, da minha passagem por Paris, em 2019.[1] Estava numa excursão cultural com professores e alunos de uma universidade franciscana da minha cidade e, numa manhã, durante o café, uma professora sugeriu que fossemos visitar a Ópera Garnier (nome dado em homenagem ao arquiteto que a planejou), também conhecida como Ópera de Paris ou Academia Nacional de Música (nome que está escrito na fachada). Naquele dia, a nossa programação fora cancelado e alguns de nós toparam a ideia.

Pegamos o metrô e desembarcamos numa estação próxima ao teatro e a primeira visão do prédio foi de uma de suas laterais. Impressionante! Alguém foi se informar a respeito da visitação e soubemos que não estava aberto naquele dia ou naquele horário, não recordo mais. Contornamos o prédio, vimos a sua fachada e o deslumbramento foi total, sensação que compartilhamos com outros turistas que passavam pelo local. Uma festa! E então pude apreciar, pela primeira vez, a famosa escultura de Jean-Baptiste Carpeaux, “A dança”, representando um grupo de bailarinas nuas, bailando alegremente em torno de um rapaz igualmente nu. Uma peça que escandalizou a cidade, quando ali foi colocada, em 1869. Só dias depois soube que estava vendo uma cópia, pois visitei o Museu d’Orsay e encontrei a peça original, que fora retirada da fachada do prédio (na década de 1960) para protegê-la da poluição. Desde 1986, ela se encontra no d’Orsay.

"A dança", de Jean-Baptiste Carpeaux.
Cópia na fachada da Ópera Garnier.

Pois contornamos a famosa Ópera e fomos vê-la novamente do terraço das Galerias Lafayette, que ficam no entorno. (Pulo a parte relativa a essas galerias – point da moda parisiense, me explicaram, lugar de roupas caríssimas e de milionárias chinesas fazendo compras com malas de rodinhas –, pois é um capítulo a parte. Assunto para uma outra crônica.) No alto do terraço pude contemplar o teatro e conversei a respeito do Fantasma da Ópera, tendo como referência o filme de 2004, dirigido por Joel Schumacher, e também a peça (que assisti num teatro de São Paulo), ambos baseados num musical da Broadway, com canções belíssimas.

Mas naquele momento, no terraço das Galerias Lafayette, numa manhã cinzenta e fria de outono (fria como um dia de inverno, ao menos para nós, brasileiros), olhando a paisagem parisiense do alto, confesso que não conseguia juntar os pontos. Vivia o deslumbramento típico de turista que chega pela primeira vez a “Cidade Luz” (nome da cidade desde os tempos do Iluminismo, conforme os livros de História) e a lembrança que eu tenho é a de que eu era uma bobice só. Uma bobice boa de viver. Tinha um copo de café numa das mãos, bebia, tirava fotos, e lembrava vagamente do Fantasma, assim como de tantas outras histórias que aprendemos a respeito de Paris... Só agora (quase cinco anos depois) consigo fechar algumas dessas histórias.

Ópera Garnier (fundos) vista do terraço das Galerias Lafayette.

Sim, o Fantasma morava no interior da Ópera (segundo Gaston Leroux, o criador do personagem). Ele era um sujeito maligno, um homem de carne e osso, marcado por uma feiura atroz e por isso rejeitado até pelos pais. Nascera em Rouan e sua trajetória o levara a andar pela Europa, pelo Oriente Médio, desenvolvendo seus talentos como cantor e construtor (neste último caso, na Pérsia e na Turquia). Por fim voltou para a França, tornou-se empreiteiro e “apresentou uma proposta para o trabalho de fundação na Ópera” (p. 319). Construiu “um lar desconhecido do restante da terra” (incluindo um enorme lago) no subsolo do teatro, e ali se isolou dos “olhares dos homens”. Mas apaixonou-se por uma cantora lírica (Catherine Daaé) e é em torno dessa paixão que gira o romance. Ele a disputa com um jovem visconde e a esconde na sua morada subterrânea. O visconde vai atrás (com auxílio de um misterioso persa, antigo conhecido do Fantasma) e, por fim, a moça é libertada para fugir com o seu verdadeiro amor.

Não sei como li o romance até o final. Muito chato para o meu gosto. Mas valeu para fechar a história vivida no terraço das Galerias, quando me extasiei com a grandiosidade da Ópera Garnier e tentei lembrar as lendas criadas em torno da sua beleza e encantamento. Talvez um dia eu consiga visitar o seu interior...

Ópera Garnier (fachada principal).




[1] LEROUX, Gaston. O Fantasma da Ópera. Trad.: Andréia Alves. Janaína, SP: Principis, 2020. 320 p. O romance foi publicado em capítulos, pela primeira vez, entre 1909 e 1910. Pela indicação do personagem-narrador (um jornalista que investiga a veracidade a respeito do fantasma) a história se passa por volta de 1880.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Betsabé

 

Conta a Bíblia, no Segundo Livro de Samuel (II Samuel), que numa certa tarde, depois de sestear, o rei Davi passeava pelo terraço do palácio e avistou uma linda mulher se banhando (provavelmente no pátio da sua casa, mas este detalhe não consta no texto bíblico). Ele procurou saber quem ela era, soube que se chamava Betsabé, esposa de Urias (militar que, naquele momento, se encontrava em serviço no exército de Davi), e enviou mensageiros para trazê-la até ele.

Betsabé, uma das mulheres mais gostosas da Bíblia (segundo a revista Superinteressante), não se fez de rogada e logo atendeu ao desejo do rei. Na sequência, Davi determinou que Urias combatesse na primeira linha, o sujeito morre e o rei faz de Betsabé uma das suas esposas.

Como se trata de uma história bíblica, claro que o rei se arrepende depois.

Lembrei do episódio porque fui rever minhas fotos da visita ao Museu do Louvre e encontrei a de um quadro a respeito dessa personagem: Betsabé recebendo a carta de Davi ("Bethsabée recevant la lettre de David"), de Willen Drost (1633-1659), artista flamengo (nascido em Amsterdã) e falecido em Veneza, aos 26 anos.

Betsabé recebendo a carta de Davi (1654).
(Museu do Louvre)

Procurei informações a respeito da figura bíblica (no Segundo Livro de Samuel, Betsabé só é referida no capítulo 11 e muito suscintamente, como mulher de grande beleza) e não encontrei nenhuma passagem que falasse de alguma carta que o rei tivesse enviado a ela. Na certa, então, mais uma lenda (dessas tantas que cercam as histórias bíblicas) ou uma criação do artista, sei lá. Seja como for, o quadro me agradou e provocou o registro. Betsabé é retratada como uma jovem inocente, desolada, pouco ou nada consciente dos seus atributos físicos que viraram a cabeça do rei, a ponto dele planejar a morte do seu marido para tê-la só para si.

Uma história que a maioria daqueles que se criam no ambiente da Igreja Católica aprendem desde cedo (no meu caso, na adolescência). História nada edificante (como diria minha mãe, professora de Catecismo), mas típica do Antigo Testamento, isto é, com personagens movidos por paixões sensuais, desejos ardentes, fúrias e ambições. Assunto que tomou meu tempo de ginasiano e colegial (frequentador assíduo das missas dominicais, leitor da Bíblia, de livros de História e de Arte) e que foi atualizado naquela visita cheia de surpresas (em 2019), que volta e meia eu retomo.

O Museu do Louvre é desses tesouros inesgotáveis e o que ele guarda em seus "labirintos" (como é fácil se perder no Louvre!) é de assunto para uma vida inteira. Uma riqueza enorme, distração garantida. Eu revejo as fotos, relembro o passeio, e mergulho nesse mundo infinito da aventura humana retratada por grandes artistas, como a paixão do rei Davi por Betsabé, e fico divagando a respeito de como (com quais sentimentos) essa formosa mulher atendeu aos mensageiros do rei e foi deitar-se com ele...

terça-feira, 11 de junho de 2024

Lembranças da praia do Cassino

 

Sonhei com a praia do Cassino uma noite dessas. Era um dia muito frio e eu caminhava sozinho pela avenida que cruza a área urbana, da antiga estação de trem até a beira do mar. Andava pelo canteiro central e de repente fui invadido pelo vento de anos e anos passados. Parei, olhei para as árvores sacudidas pela ventania e tive certeza disso. Dentro de mim, o eco de conversas antigas a respeito das relações entre mães e filhos e seus intermináveis desdobramentos.

Avenida Central da praia do Cassino.
(Foto de 2016)

Sim, mais de uma vez andei pela avenida central do Cassino (tanto no inverno como no verão) e conversei a respeito das relações entre mães e filhos e sobre a morte das mesmas. Debaixo daquelas árvores, na década de 1970, eu falei sobre o que vivia com minha mãe com uma prima, a Carmen Lúcia, e penso que foi a partir daquela época que o assunto se colocou para mim como fundamental. Eu veraneava na casa dos pais dela (os tios Victor e Maria Delfina) e recordo de irmos a feira (comprar figo, entre outras coisas) e tratarmos do assunto. Minha prima, alguns anos mais velha do que eu, dava uma importância enorme ao tema e com ela aprendi o quanto os pais (especialmente as mães) são importantes na nossa formação.

Histórias de mães e filhos se tornaram um assunto constante (mais tarde reviradas e analisadas em consultórios psiquiátricos) e foi na praia do Cassino que tudo começou. Minha prima Carmen Lúcia morreu, nossas mães morreram também, e o sonho girou em torno de um inverno no qual eu andava com uma antiga companheira e ela acabara de perder a mãe. Eu tentava auxiliá-la no seu luto e meus comentários não agradaram. A relação que ela tivera com a mãe fora sofrida e abordar o tema era espinhoso. Eu procurava ajudá-la, não fui feliz na tentativa e ela embrabeceu comigo. A sua dor, no entanto, ardia feito brasa nas minhas mãos. Eu nunca descuidara do assunto, sempre o tratara com atenção e, muitas vezes, com exagerada insistência. Anos depois minha mãe faleceu e me vi às voltas com o mesmo caso: o penoso processo de enterrar a mãe.

Acordei pensando em tudo isso, mas de modo algum angustiado, apenas lembrando. A praia do Cassino foi um cenário importante na minha vida: o local onde primeiro vi o mar. Lugar que frequentei desde recém-nascido, como tantas vezes minha mãe contou. Guri entre oito e dez anos, eu “pescava” siri nas margens da Barra do Rio Grande (nos molhes) e as lembranças desse tempo se tornaram preciosas. A partir dos anos 2000 passei a frequentar a praia com assiduidade (especialmente nos verões) e as vivências no local se intensificaram. Hoje essas memórias se reconfiguram sem que eu tenha o menor controle.

A memória das mães se entrelaça com a paisagem do Cassino e a praia ganha outra coloração, tecida por histórias de mães e filhos, nem sempre fáceis de desfiar e compreender. No entanto, sempre muito boas de recordar, pois são as narrativas que me constituem e revivê-las é sempre uma oportunidade desvendar novas facetas da minha história. Um processo sem fim de encontro comigo mesmo.

Antiga Estação de Trem da praia  do Cassino.
(Foto de 2016)


terça-feira, 4 de junho de 2024

Segurar um homem (conto)

 

       Tia Conceição está pessimista em relação ao novo relacionamento de Isabel, sua sobrinha e minha prima. Ela sabe que Isabel é uma mulher de dois casamentos com finais difíceis de explicar e duvida que ela emplaque um terceiro. Mas reconhece que, apesar da idade e das dificuldades, ela ainda é capaz de despertar a atenção dos homens.

– Minha sobrinha encena caras e bocas com tanta energia e vibração que me deixa zonza. Parece provocação. Um esforço para dizer que ainda é capaz de qualquer coisa, não está morta, apesar dos seus cinquenta e poucos anos. Ela ainda consegue ser vibrante e isso atrai os homens.

– Isabel sempre foi uma mulher independente – continua a tia –, mas está cansada. Valdemar surgiu nesse momento da sua vida, quando já não esperava grande coisa. Ele é um homem de idade avançada, rico, que está babando por ela.

Tia Conceição interrompe a sua fala para beber um gole de chá, buscar as melhores palavras para se expressar e por fim retoma:

– Babar por uma mulher é muito vulgar, mas é isso que está acontecendo. Da parte da minha sobrinha, no entanto, não creio que ocorra o mesmo, mas sim algum deslumbramento. Um homem desses cair aos seus pés é algo surpreendente. Um homem poderoso, de grandes realizações nos negócios, não estava no seu horizonte. Ele é desses sessentões endinheirados, separado há pouco tempo, e com muita mulher rondando, a maioria mais interessadas no seu dinheiro do que em outra coisa. Comparada a essas mulheres, Isabel leva vantagens: a honestidade e a independência, o que tranquiliza qualquer homem.  

– Valdemar caiu de beiço, isso posso garantir – continua tia Conceição, rindo – e Isabel percebeu logo. Sentiu-se prestigiada, o que ela afirma que não vivia com seu último marido que ela garante que era furioso, dado a rompantes, que não a valorizava como mulher, mas que eu acho, cá pra nós, que não passava de um plasta que a seguia feito um cachorrinho. Ela reconhece que Valdemar é um conservador, retrógrado mesmo, como a maioria dos homens da área empresarial, que isso a incomoda, mas está aprendendo a suportar.

– Por que não? Foi bem isso que ela me disse – esclarece tia Conceição. – Minha sobrinha colocou tudo na balança, os prós e os contras, e viu que tem mais a ganhar do que a perder. Ele é um homem que tem valores incompatíveis com os de uma mulher moderna, mas, afinal, o que é isso? Valores, costumes, ideário político, isso às vezes se muda e ela está jogando com essa possibilidade. Ela sempre transformou os homens com os quais se casou e o último, então, ela dominou, isto eu sei. Deve estar imaginando que vai repetir a façanha.

Tia Conceição para novamente de falar, suspira fundo e diz que esta é uma característica da família:

– Somos mulheres fortes. Acreditamos no nosso poder. Mas hoje eu sei que isso não é garantia de grande coisa. O jogo com os homens não é parelho. Eles sempre contam com recursos com os quais não contamos. Eu vivi isso. Meu marido parecia me colocar no centro da sua vida e, de repente, se engraçou por um pedaço de carne mais nova e me deixou. Não teve pena nem dó.

Tia Conceição se desculpa dos termos utilizados (“Ora, um pedaço de carne nova, que vulgaridade!”), mas recordar o que viveu com o ex-marido ainda a perturba.

– Foi um rabo de saia novo, sim, que virou a cabeça dele. Quase uma adolescente, para dizer a verdade. E eu não esperava que aquele bandido me deixasse depois de tudo que fiz por ele. Nesse ponto, acho Isabel parecida comigo, capaz das mesmas ilusões, achando-se melhor do que é, e por isso a minha preocupação. Ela está agindo com muita diplomacia, é verdade – discorre tia Conceição, buscando as palavras adequadas –, mas está deslumbrada e confiante demais. Segurar um homem não é tarefa fácil, Valdemar é desses que tem muitos recursos e não sei se Isabel está ponderando bem este aspecto. Ele pode estar babando, como se diz, mas é homem muito rodado, com muita visão e sucesso na vida, e esses não caem em qualquer conversa.

Tia Conceição coloca a mão no bule, diz que a água não está mais quente para outro chá e diz também que já falou demais e que eu não vá escrever sobre isso.

– Segurar um homem não é coisa fácil. Ainda mais quando há muito diferença entre os dois, como era o caso do meu marido e eu, como é o caso de Isabel e Valdemar. Apesar de termos a mesma origem, ambos descendentes de imigrantes, nunca concordamos quanto ao modo de ver o mundo. Isso pesou no final da vida. Eu não percebi, faceira que era, tal qual Isabel. Mas quando não servi mais, quando fiquei velha – diz tia Conceição com a voz tremida pela emoção –, ele não teve dificuldade de me deixar. Afinal era esse o seu modo de conduzir a vida, sempre muito atento aos seus interesses, sempre querendo o melhor para si, e não sei por que Valdemar me lembra ele. Puro palpite. Afinal são homens de visão, de iniciativa, de sucesso (no caso de Valdemar, de muito mais sucesso do que meu Antônio), e com homens assim as mulheres geralmente perdem.

Tia Conceição é dessas senhoras cultas que contam e recontam a própria vida e sempre acrescentam alguma coisa. Viajada e atenta ao mundo ao redor, ela é para mim um manancial de histórias e sempre me agrada o jeito como aborda os relacionamentos da família, em especial os namoros, os casamentos, as traições inclusive. Eu registro cada história como posso e, mesmo reconhecendo a precariedade das minhas narrativas, tenho prazer em realizá-las.