Pelotas é uma cidade com muita história. Não é a mais antiga do Rio Grande do Sul, mas se formou na primeira metade do século XIX como um centro produtor de charque, este produto se tornou o principal item de exportação da então Província de São Pedro e a cidade passou a ter um papel importante na região.
Na primeira metade do século XX a cidade ainda
mantinha bom desempenho econômico, abrigando um significativo setor industrial,
mas declinou consideravelmente a partir do final da década de 1950. O eixo Porto
Alegre – Caxias do Sul disparou quanto ao crescimento da indústria e até a
agropecuária da Campanha, da qual Pelotas ainda funciona como escoadouro, foi
superada em produtividade pela da região norte do Estado.
Segundo os dados do IBGE para 2018, Pelotas é o quarto
município do estado em número de habitantes e o nono quanto à contribuição ao
PIB estadual. Foram-se os áureos tempos dos quais os pelotenses tanto se ufanam,
mas restaram muitos vestígios desse período.
Fundos da Charqueada São João. |
Estive em Pelotas dias atrás e faço esse preâmbulo para
melhor pensar a cidade. Meu roteiro foi turístico (com guia local inclusive) e
estive na Charqueada São João, na Praça Coronel Pedro Osório e seu entorno (no
Museu do Doce, dessa vez), na Catedral e no Mercado Central. Tudo muito bonito –
a grandeza dos antigos charqueadores, a opulência dos casarões, a sofisticação
artística da Catedral, o requinte do Mercado –, mas preciso dizer que Pelotas
não é apenas isso. É uma cidade com um rico patrimônio histórico, sim, mas em
acentuado declínio econômico (quando comparado com os dez maiores municípios do
Estado), com bastante pobreza e alta concentração de renda. Um território intrigante
para quem nasceu na cidade (como eu) e nela viveu a infância (entre 1955 e 67).
Estive na Charqueada São João quando criança de colo,
a Praça Coronel Pedro Osório foi meu local de brincadeiras aos domingos (correr
de pega-pega, jogar miolo de pão aos marrecos) e diversas vezes acompanhei o
pai ao Mercado Público, quando ele ia comprar peixe ou camarão. Inesquecível a
cena da abertura da peixaria (às cinco horas da tarde) com os carregadores virando
os sacos de peixes e camarões em mesas arredondas (com a base e as bordas de cimento, os tampos de azulejo). Os peixes e camarões deslizavam em cima dos
azulejos das mesas, alguns siris saiam correndo, um verdadeiro espetáculo.
Quando a guia colocou o meu grupo de turistas nos
bancos de uma capela lateral ao altar da Catedral e começou a explicar uma tela
de Aldo Locatelli (Sagrado Coração de Maria), lembrei das conversas da
minha mãe. Ela falava do bispo D. Antônio Zattera, responsável pelo projeto de
decoração do interior da Catedral e do quanto isso mexeu com a população da
cidade. A mãe era moça solteira, professora de grupo escolar, e acompanhou a
chegada de Locatelli (1948), os seus trabalhos na igreja, inclusive a
utilização de figuras locais como modelos para as pinturas.[i]
Lembranças
confusas, devo dizer, mas muito vivas. Naquele momento, foi como se eu escutasse
minha mãe e sentisse o seu entusiasmo... Quando quis comentar com a guia as
informações que minha mãe passava (o nome das pessoas que serviram de modelo),
embaralhei tudo. Bem podia ter ficado calado. No entanto visitar Pelotas é
assim: as lembranças se sobrepõem umas às outras e nem sempre é fácil
organizá-las.
Ao sair da Catedral e me deparar com a chegada dos
convidados do casamento que iria ocorrer naquele final de tarde, parei à
calçada (junto com minhas colegas de viagem) observando as mulheres com seus
vestidos longos e esvoaçantes. De certa forma, era o mesmo que vivi nos anos 60:
a Catedral abrigando casamentos elegantes ao entardecer. Homens e mulheres
chegando com roupas de festa (alguns descendo de "carros de praça", como era o caso da minha família) e minha mãe
cuidando para que o vento não desmanchasse o penteado, entrando depressa na
igreja. E eu, menino de calças curtas, olhando para todos os lados, admirado.
[i] A
maioria dos trabalhos de Locatelli foram de pinturas feitas diretamente nas
paredes do interior da Catedral e a tela intitulada Sagrado Coração de Maria,
na capela à direita do altar, foi uma das poucas que o artista fez para a
igreja. Talvez a única. Havia o projeto de uma outra tela, para a capela à
esquerda do altar, mas essa não chegou a ser finalizada.
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