terça-feira, 3 de maio de 2022

Roteiro pelotense (1)

            Pelotas é uma cidade com muita história. Não é a mais antiga do Rio Grande do Sul, mas se formou na primeira metade do século XIX como um centro produtor de charque, este produto se tornou o principal item de exportação da então Província de São Pedro e a cidade passou a ter um papel importante na região.

Na primeira metade do século XX a cidade ainda mantinha bom desempenho econômico, abrigando um significativo setor industrial, mas declinou consideravelmente a partir do final da década de 1950. O eixo Porto Alegre – Caxias do Sul disparou quanto ao crescimento da indústria e até a agropecuária da Campanha, da qual Pelotas ainda funciona como escoadouro, foi superada em produtividade pela da região norte do Estado.

Segundo os dados do IBGE para 2018, Pelotas é o quarto município do estado em número de habitantes e o nono quanto à contribuição ao PIB estadual. Foram-se os áureos tempos dos quais os pelotenses tanto se ufanam, mas restaram muitos vestígios desse período.

Fundos da Charqueada São João.

  Estive em Pelotas dias atrás e faço esse preâmbulo para melhor pensar a cidade. Meu roteiro foi turístico (com guia local inclusive) e estive na Charqueada São João, na Praça Coronel Pedro Osório e seu entorno (no Museu do Doce, dessa vez), na Catedral e no Mercado Central. Tudo muito bonito – a grandeza dos antigos charqueadores, a opulência dos casarões, a sofisticação artística da Catedral, o requinte do Mercado –, mas preciso dizer que Pelotas não é apenas isso. É uma cidade com um rico patrimônio histórico, sim, mas em acentuado declínio econômico (quando comparado com os dez maiores municípios do Estado), com bastante pobreza e alta concentração de renda. Um território intrigante para quem nasceu na cidade (como eu) e nela viveu a infância (entre 1955 e 67).

Estive na Charqueada São João quando criança de colo, a Praça Coronel Pedro Osório foi meu local de brincadeiras aos domingos (correr de pega-pega, jogar miolo de pão aos marrecos) e diversas vezes acompanhei o pai ao Mercado Público, quando ele ia comprar peixe ou camarão. Inesquecível a cena da abertura da peixaria (às cinco horas da tarde) com os carregadores virando os sacos de peixes e camarões em mesas arredondas (com a base e as bordas de cimento, os tampos de azulejo). Os peixes e camarões deslizavam em cima dos azulejos das mesas, alguns siris saiam correndo, um verdadeiro espetáculo.

Quando a guia colocou o meu grupo de turistas nos bancos de uma capela lateral ao altar da Catedral e começou a explicar uma tela de Aldo Locatelli (Sagrado Coração de Maria), lembrei das conversas da minha mãe. Ela falava do bispo D. Antônio Zattera, responsável pelo projeto de decoração do interior da Catedral e do quanto isso mexeu com a população da cidade. A mãe era moça solteira, professora de grupo escolar, e acompanhou a chegada de Locatelli (1948), os seus trabalhos na igreja, inclusive a utilização de figuras locais como modelos para as pinturas.[i]

 Lembranças confusas, devo dizer, mas muito vivas. Naquele momento, foi como se eu escutasse minha mãe e sentisse o seu entusiasmo... Quando quis comentar com a guia as informações que minha mãe passava (o nome das pessoas que serviram de modelo), embaralhei tudo. Bem podia ter ficado calado. No entanto visitar Pelotas é assim: as lembranças se sobrepõem umas às outras e nem sempre é fácil organizá-las.

Ao sair da Catedral e me deparar com a chegada dos convidados do casamento que iria ocorrer naquele final de tarde, parei à calçada (junto com minhas colegas de viagem) observando as mulheres com seus vestidos longos e esvoaçantes. De certa forma, era o mesmo que vivi nos anos 60: a Catedral abrigando casamentos elegantes ao entardecer. Homens e mulheres chegando com roupas de festa (alguns descendo de "carros de praça", como era o caso da minha família) e minha mãe cuidando para que o vento não desmanchasse o penteado, entrando depressa na igreja. E eu, menino de calças curtas, olhando para todos os lados, admirado.



[i] A maioria dos trabalhos de Locatelli foram de pinturas feitas diretamente nas paredes do interior da Catedral e a tela intitulada Sagrado Coração de Maria, na capela à direita do altar, foi uma das poucas que o artista fez para a igreja. Talvez a única. Havia o projeto de uma outra tela, para a capela à esquerda do altar, mas essa não chegou a ser finalizada.

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