Estive novamente em Piratini e repeti a chamada Linha Farroupilha, um percurso pelo centro histórico da cidade, com marcas nas calçadas indicando os prédios que assinalam a história do Decênio Heroico. A expressão “Decênio Heroico” é exagerada, mas, vá lá, não há como escapar da mitologia que se construiu em torno da revolta de parte da elite da Província de São Pedro em relação ao Império Brasileiro, entre os anos de 1835 e 45.
Assim como os paulistas, que foram derrotados militarmente
na Revolução Constitucionalista de 1932, nós, os gaúchos, fizemos da derrota dos
farrapos uma grande vitória do espírito indomável do povo sul-rio-grandense.
Um povo virtuoso que não quis ser escravizado pelo governo imperial e abraçou a
causa da liberdade e autonomia, conforme os versos do hino oficial do estado: “povo
que não tem virtude / acaba por ser escravo”.
A derrota militar foi sucedida por um acordo político
entre as lideranças rebeldes e o Império (o Tratado de Poncho Verde, responsável por uma "paz honrosa" entre as partes) e isso bastou
para que, tempos depois, se construísse o entendimento de uma revolta exitosa que
soube impor os interesses da Província ao Governo Central. Uma interpretação
questionável a respeito do final do conflito, mas que é fundamental na
construção da identidade sul-rio-grandense contemporânea.[i]
Fachada do Museu Barbosa Lessa, com a guia local falando a respeito da Revolução Farroupilha. |
Caminhar pela Linha Farroupilha de Piratini (criada em
2012), ouvir as explicações da guia local, visitar os dois museus da cidade (o Museu Barbosa
Lessa e o Museu Farroupilha) é mergulhar nesse entendimento grandioso da guerra
civil e, nesse estado de espírito, contemplar as salas onde se deram as
reuniões políticas e militares que marcaram os caminhos da revolta provincial.
O Museu Barbosa Lessa foi sede do Palácio da República Rio-Grandense; o Museu
Farroupilha, do Ministério da Guerra e assim somos envolvidos no climão revolucionário.
Num e outro, vemos objetos, documentos e recuerdos desse período
memorável e não há como não se emocionar. A narrativa contemporânea dignifica
os soldados negros e índios que combateram sob a liderança dos grandes
proprietários e hoje somos todos um povo virtuoso lutando contra a opressão dos governos centrais do passado e do presente.
Contam que uma professora de Caxias do Sul levou seus
alunos a visitar a cidade e, chegada à frente do prédio onde residiram Giuseppe
Garibaldi e Luigi Rossetti, se debulhou em lágrimas. Naquela residência foi impresso
O Povo, o mais importante jornal da efêmera república, e bem entendo a mestra
emocionada, na certa uma leitora entusiástica dos livros a respeito da História
Sul-Rio-Grandense.
De cada vez que visito a cidade alguma coisa me toca
mais do que as demais e, dessa vez, isso coube a dois postais do casal
revolucionário, uma representação de Anita e Giuseppe Garibaldi quando se
encontravam a caminho da Itália (conforme as palavras da guia do museu, abafadas pela máscara contra a Covid-19). O casal descansado dos combates e
elegantemente trajado. Anita, delicadíssima, muito distante da amazona que foge
das tropas imperiais montada num cavalo com o filho recém-nascido nos braços.
Um episódio ocorrido na vila de Mostardas, em 1840, e representado numa enorme
pintura à óleo que domina a mesma sala onde se encontram os simples postais, no Museu Farroupilha.[ii]
Postais de Anita e Giuseppe. |
Não sei porque gostei tanto desses postais. Seja como for, fui fisgado
pelas imagens e por meio delas imaginei o casal cruzando o Atlântico, caminhando
enlevados pelo convés do navio, enfim suspensos da insana luta para libertar os
povos e transformar o mundo. Uma loucura que alguns sonhadores abraçam e até entregam a própria vida, como fez o ilustre casal...
Coisas que a gente imagina, quando passeia por Piratini e mergulha no Decênio Heroico.
[i] O
acordo que selou o fim da revolta foi um acerto entre o Governo Central e as
lideranças farroupilhas tendo em vista a preservação da unidade territorial do
Império e da sua defesa frente às ameaças de Juan Manuel Rosas, então
governador de Buenos Aires e com projeto expansionista.
[ii] O
quadro se chama “Fuga de Anita Garibaldi a cavalo” (1918), de Darkir Parreiras,
encomendado por Borges de Medeiros para o palácio do governo. Mais tarde, com a
escolha de Piratini como o local de memória privilegiado da Revolução
Farroupilha, a tela foi transferida para o museu da cidade.
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