Entrei no sebo e fui direto numa prateleira onde sabia encontrar As obras de Karl May, uma coleção de trinta volumes da Editora Globo, que fazia muito sucesso décadas atrás. Os três primeiros livros, os mais famosos, intitulados Winnetou e ambientados no Oeste Norte-Americano, eram os únicos que não havia nenhum exemplar.
Winnetou –
que Fernando Sabino apontava como “o livro mais sensacional” que leu na vida –
eu devorei (sem exagero) na juventude, emprestado por um colega de ginásio
(Nilton França). Meu pai também foi leitor de Karl May e, além desse romance,
me falava com particular entusiasmo a respeito de um outro, ambientado, no Oriente
Médio, Pelo Curdistão bravio – também citado por Rubem Fonseca como
leitura inesquecível da sua juventude.
Eram as aventuras de Kara Ben Nemsi pelo território do
Império Otomano que eu procurava e, felizmente, encontrei. Li a princípio com
entusiasmo – reencontrando alguma coisa da juventude assim como das conversas
com meu pai –, mas, da metade para o final, achei cansativo.
Seja como for, não pude largar o livro. Estava
embalado por alguma coisa mais profunda: o desejo de alcançar o território mítico
indicado pelo meu pai, a terra dos curdos, esse povo que sempre imaginei
altivo, livre, muito digno, e que a narrativa de Karl May endossa.
O livro é narrado por Kara Ben Nemsi, um alemão forte,
bom de soco, cioso de sua condição de europeu, representante de uma civilização
que considera superior e orientada por uma igreja que imagina santa. Ele narra
as peripécias do seu grupo (ele, um criado, mais dois amigos) que adentra o Curdistão,
a partir da cidade de Mossul (no norte do Iraque, atualmente), com o propósito
de libertar um árabe que está prisioneiro dos turcos numa cadeia da região.
Nessa viagem, o herói entra em contato com tribos
curdas, com autoridades turcas (tem um passe dado pelo governante turco de
Mossul), com tribos nestorianas, se envolve em grandes enrascadas, é preso
diversas vezes e sempre se liberta, usando a astúcia e os punhos, jamais as armas
de fogo que maneja super bem. A ilustração da capa do livro, por sinal, é uma
cena exemplar do personagem-narrador: ele se vê desrespeitado pela autoridade
de uma aldeia e então a ergue no ar, diz que vai jogá-la longe, mas não cumpre
a ameaça depois que o homem aceita trata-lo com consideração.
Um mocinho de fita de cinema, que evita que o exército
turco ataque uma tribo curda, evita que curdos e nestorianos se guerreiem,
salva uma mocinha à beira da morte por envenenamento, trava amizade com uma
espécie de sacerdotisa do Cristianismo Nestoriano e tudo entende, resolve,
encontra saída.
Ao final do livro, num diálogo com a sacerdotisa nestoriana,
o herói explicita o propósito de suas andanças por terras distantes. É um europeu
colonialista, sim, mas se opõe ao autoritarismo e violência típicos do colonialismo.
Orientado pelos mandamentos da Igreja Católica, Kara Ben Nemsi se coloca como
um missionário, é contrário à morte de qualquer ser humano e pretende o entendimento
entre os povos... Pelo Curdistão bravio concretiza essa fantasia.
Incrível como essas narrativas embalaram gerações,
incluindo aí a de meu pai e minha também – nós, reles habitantes do Extremo
Ocidente (a América Latina) colonizada por europeus e norte-americanos.
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