domingo, 12 de maio de 2024

Um passado muito distante

 

Encontrei Susana no Parque da Redenção, em Porto Alegre. Eu estava sentado num banco, olhando não sei pra onde, ela passou, me viu e se sentou ao meu lado para perguntar sobre o irmão. Eu disse que nos vemos pouco, só trocamos e-mails, geralmente sobre os livros. Meu amigo é publicitário e poeta, mas sem livro publicado.

Então ela me contou que ele não consegue se recuperar da separação, o que eu sei mais ou menos, pois homens não costumam se estender em confissões entre si.

– Ele deixou a Vani há quatro anos e tá sozinho até hoje. Não engata coisa alguma – ela disse. – Só biscate e olhe lá. Um dia a ex se desentendeu com um namorado e foi dar com os costados no apartamento dele. Se aboletou por lá duas semanas, ferida e magoada, segundo ela mesma.

– Eu soube – falei. – Até pensei que ela tivesse apanhado do cara, mas não foi nada disso. Foi morar com o sujeito e arrepiou. Se desgostou do sujeito, que era velho e cheio de manias, conforme ela contou.

– Pois é, e aí ele recebeu a ex, uma safada, deu colinho, fez sopinha e deixou ela dormindo por lá.

– O Rafa é assim: um coração generoso – falei.

– Um paspalhão, isso sim. A Vani sempre pintou e bordou, ele deixou ela por conta disso, mas tá aí: não consegue encerrar o ciclo. Ou a ópera, pois é uma ópera esse casamento e separação deles. – Fez uma pausa e arrematou: – Tu não queres ir lá, dar um toque pra ele? A Vani vai manter ele na rédea curta até o fim da vida e ele vai servir de estepe por muito e muito tempo, escreve o que tô te dizendo.

– E eu vou lá fazer o quê? – pergunto.

– Fazer ele bancar o homem, ora bolas. Mas tem outra coisa – e Susana me explicou a história do vaso. Um vaso que a ex deu para ele, num período de reconciliação. – Acho que dentro daquele vaso, escondido entre as raízes da planta, tem um sapo morto. Só pode.

Eu ri, mas prometi que iria lá, sim. Não moro mais em Porto Alegre, mas tenho viajado para lá frequentemente e, assim, dei um jeito de aparecer na casa do meu amigo poeta. E convenci ele a se desfazer da planta – uma Crássula Ovata – que está num canto da sacada. Bonita planta, por sinal, bem vistosa. Vingou na sacada do meu amigo.

Juntos, então, meu amigo e eu cortamos a planta em pedaços, revolvemos a terra do vaso e colocamos tudo dentro de sacos, sem encontrar nenhum sapo. “Nenhuma mandinga”, escrevi para Susana.

Meu amigo até ficou emocionado, disse que era presente da ex, não gosta de se desfazer dos signos do passado, mas compreendia minha preocupação.

- Às vezes há sinais no mundo que ignoramos, não sabemos ler - ele filosofou.

– O caso é que não consigo esquecer a Vani - ele continuou. - Não consigo deixar de me preocupar com ela. – Fez uma pausa e concluiu, olhando para os próprios pés: – Agora ela anda com outro velho rico, parece que tá jogando só nessa clientela, e eu me preocupo com isso.

Sentados nós dois na sacada, bebendo vinho, meu amigo fala que sente como se existissem amarras dentro dele prendendo-o a um passado muito distante.

– Não é a Vani que me segura – ele poetiza. Sim, meu amigo é poeta. – É coisa de outras eras, do "cosmopolitismo das moneras", como diria Augusto dos Anjos. É esse mundo arcaico que me puxa para o fundo.

Eu aponto os sacos com a planta e a terra e digo para ele que, quando aquilo estiver no caminhão do lixo, não haverá mais nada pesando na sua vida. Nós dois não acreditamos disso, mas rimos da piada fraca.



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