segunda-feira, 27 de maio de 2024

Culpa imaginária

          

Meu avô gostava de falar do tempo dos caudilhos, da Revolução de 1923, por exemplo, do episódio em que Zeca Netto tomou Pelotas por um dia. Invadiu a cidade de madrugada, pegou os quartéis desprevenidos e os controlou após uma troca de tiros. Depois desfilou as tropas rebeldes no centro da cidade, sob aplausos da multidão.

O vô falava como se estivesse lá, assistindo a tudo, mas depois eu soube que a vó não o deixou sair de casa naquele dia. Quando ela soube que a revolução chegara na cidade, proibiu ele de sair.

Acho que a vó teve razão. Meia dúzia de civis foram feridos, dois ou três morreram e o vô contava que um dos mortos era uma mulher recém-casada. Ela abriu a janela da sua casa e recebeu um tiro na testa. O marido ficou inconsolado. Durante anos se culpou pela morte da esposa porque achava que ele tinha pedido para ela ir à janela ver o que estava acontecendo... e por isso ela morrera. Anos mais tarde ele ouviu a sogra contando a sua versão dos fatos:

– Naquele dia eu fui correndo na casa da Aninha para ver se ela e o marido estavam bem. Bati na janela, ela veio atender e aconteceu aquela desgraça.

O vô contava essa história. Ele o conhecera. Talvez tenham sido colegas nas Ferragens Viana (em Pelotas), ambos trabalhando como comerciários. Lembro do vô desfiando esse caso, sentado numa espreguiçadeira na calçada, na frente de casa, nas noites de verão. Mas não tenho mais certeza se o episódio foi de fato em Pelotas ou em Bagé ou mesmo em Santa Maria (neste último caso, durante a greve dos ferroviários de 1917). Seja como for, foi coisa de política & revolução ou movimento social. E o viúvo ficou inconsolado, se achando o culpado da morte. E foi desta maneira que ele se tornou parte da minha galeria de personagens: a dos homens atormentados por uma culpa imaginária. Culpado por algo pelo qual não foi responsável.

Estava presente na cena do crime, apenas isso, não participou de coisa alguma, mas se sentia como se tivesse comandado o show. Uma culpa decorrente de um sentimento de onipotência, pois o tiro não foi dado por ele e, sim, por uma das partes beligerantes, um rebelde maragato ou um chimango legalista. Mas na sua imaginação, o tiro foi disparado por ele, quando mandou a mulher abrir a janela... Que poder, hein?!

Quem tem propensão a se sentir culpado, sempre arranja um jeito de puxar a culpa para o seu lado. Eu faço parte desse time, é terrível. Fácil, fácil me sinto responsável pelas dores do mundo. As pessoas se dão mal ao meu redor, eu fico achando que podia ajudá-las, poderia fazer alguma coisa para minorar seu sofrimento... Uma merda! E custo a perceber que não há coisa alguma que eu possa fazer. Vá dormir com um barulho desses!

Quando o vô contava essa história, terminava mais ou menos assim:

– Ele nunca esqueceu aquela desgraça. Casou de novo com mulher bonita, teve filhos saudáveis e de vez quando puxava essa história do fundo do baú. Acho que, se esposa não tivesse levado um tiro, inventaria outra coisa pra desgraçar a sua vida. Nunca se deu conta que a peleia era entre maragatos e chimangos. Foi um desses filhos da puta quem sentou o balaço nas fuças da mulher, ele não. Ele nunca passou de um reles civil desarmado. Um infeliz.

Passado mais de cinquenta anos dessas conversas do meu avô na calçada, em noites de verão, desconfio que minha memória recriou muito coisa. Inventou mesmo. Mas o essencial ficou: meu avô descortinando o mundo para o guri que eu era e, entre as figuras apontadas, a desses desgraçados que sofrem por culpas imaginárias.  

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