domingo, 8 de janeiro de 2023

O segredo

 

Minha avó tinha um segredo que a atormentou a vida inteira. Todos os adultos sabiam, mas não tocavam no assunto, ao menos na frente dos mais novos. Eu só tomei conhecimento quando andava por volta dos 28 anos, por meio da minha mãe. Era metade da década de 1980, minha avó enviuvara e deixara Pelotas para vir morar em Porto Alegre com a única filha. Tempos difíceis para ela, quando se viu vivendo numa casa onde não era ela quem tomava as decisões. Pouco depois esclerosou.

Se fosse nos anos 2000 provavelmente sua demência seria diagnosticada como Alzheimer, mas naquele tempo não se falava nisso.

– A vida inteira ela foi uma mulher difícil – a mãe comentava – e teu avô teve muita paciência.

E teve mesmo, posso acrescentar. Uma paciência, no entanto, que cobrou um preço danado ao velho. No final da vida ele estava enredado pelos caprichos da esposa. Soube disso pela minha mãe.

Quanto ao segredo, ele remontava ao seu pai. Ela nascera por volta de 1900 (data que consta na certidão, que minha mãe acreditava não ser a verdadeira) e sua mãe estava casada com um jornalista mulato, baiano, chamado Lacerda. Minha bisavó (filha de alemães) teve três filhos com esse baiano até ele escafeder-se repentinamente. Essa a versão que minha mãe sabia (sem ter certeza dela ser fidedigna).

– O mulato deixou a tua bisavó sozinha, com três filhos pequenos, ela conheceu um engenheiro italiano e casou novamente. Mas o novo marido impôs uma condição: ele perfilhava as crianças e não se falava mais no baiano.

Pronto, o silêncio em torno do pai verdadeiro se transformou num problema para minha vó. Mil voltas para encobrir um pai de pele negra (numa sociedade marcada por profunda discriminação racial como é o caso da pelotense) e sumido. O que a incomodou mais?, minha mãe e eu perguntávamos: o pai negro ou o pai sumido? Nunca soubemos a resposta.

Minha vó era uma mulher de segredos e mistérios, alguns rompantes e uma amor desmesurado por filhos e netos. Criança, eu frequentava a sua casa e uma das melhores lembranças é a de quando ela me servia um ou dois ovos quentes dentro de uma xícara, no meio da manhã. Eu me sentava diante de uma pequena mesa que havia na sua cozinha e adorava aquela atenção (que achava a coisa mais natural do mundo). Me deliciava com os seus movimentos no balcão da pia e diante do fogão, preparando o almoço, cortando e lavando legumes, destrinchando uma galinha, temperando os pedaços, essas coisas. Gostava de escutar os sons desse trabalho doméstico, prestar atenção nos movimentos e principalmente na luz do sol que entrava pela janela e incidia sobre minha xícara. Comia lentamente os “ovos na xícara”, ignorante dos tormentos da avó, mas não do seu carinho, da sua proteção.

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