Minha avó tinha um segredo que a atormentou a vida
inteira. Todos os adultos sabiam, mas não tocavam no assunto, ao menos na
frente dos mais novos. Eu só tomei conhecimento quando andava por volta dos 28
anos, por meio da minha mãe. Era metade da década de 1980, minha avó enviuvara
e deixara Pelotas para vir morar em Porto Alegre com a única filha. Tempos difíceis
para ela, quando se viu vivendo numa casa onde não era ela quem tomava as
decisões. Pouco depois esclerosou.
Se fosse nos anos 2000 provavelmente sua demência
seria diagnosticada como Alzheimer, mas naquele tempo não se falava nisso.
– A vida inteira ela foi uma mulher difícil – a mãe
comentava – e teu avô teve muita paciência.
E teve mesmo, posso acrescentar. Uma paciência, no
entanto, que cobrou um preço danado ao velho. No final da vida ele estava enredado
pelos caprichos da esposa. Soube disso pela minha mãe.
Quanto ao segredo, ele remontava ao seu pai. Ela nascera
por volta de 1900 (data que consta na certidão, que minha mãe acreditava não
ser a verdadeira) e sua mãe estava casada com um jornalista mulato, baiano,
chamado Lacerda. Minha bisavó (filha de alemães) teve três filhos com esse
baiano até ele escafeder-se repentinamente. Essa a versão que minha mãe sabia (sem
ter certeza dela ser fidedigna).
– O mulato deixou a tua bisavó sozinha, com três filhos
pequenos, ela conheceu um engenheiro italiano e casou novamente. Mas o novo
marido impôs uma condição: ele perfilhava as crianças e não se falava mais no
baiano.
Pronto, o silêncio em torno do pai verdadeiro se
transformou num problema para minha vó. Mil voltas para encobrir um pai de pele
negra (numa sociedade marcada por profunda discriminação racial como é o caso da
pelotense) e sumido. O que a incomodou mais?, minha mãe e eu perguntávamos: o
pai negro ou o pai sumido? Nunca soubemos a resposta.
Minha vó era uma mulher de segredos e mistérios,
alguns rompantes e uma amor desmesurado por filhos e netos. Criança, eu frequentava
a sua casa e uma das melhores lembranças é a de quando ela me servia um ou dois
ovos quentes dentro de uma xícara, no meio da manhã. Eu me sentava diante de
uma pequena mesa que havia na sua cozinha e adorava aquela atenção (que achava
a coisa mais natural do mundo). Me deliciava com os seus movimentos no balcão
da pia e diante do fogão, preparando o almoço, cortando e lavando legumes, destrinchando
uma galinha, temperando os pedaços, essas coisas. Gostava de escutar os sons
desse trabalho doméstico, prestar atenção nos movimentos e principalmente na luz
do sol que entrava pela janela e incidia sobre minha xícara. Comia lentamente os
“ovos na xícara”, ignorante dos tormentos da avó, mas não do seu carinho, da
sua proteção.
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