Uma das primeiras aulas que ministrei no Curso de História foi a respeito da literatura medieval. A colega responsável pela disciplina “Idade Média” precisava se ausentar e fui substituí-la na sala de aula. Apresentar um panorama a respeito do que era produzido literariamente no medievo e, não sei porque cargas d’água, centrei o foco no Poema de mio Cid. O poema não me empolgara, mas o seu personagem central – Rodrigo Díaz, El Cid, figura histórica do século XI espanhol – era meu velho conhecido.
Li o que
encontrei na biblioteca (inclusive o famoso poema) e lá fui encarar os alunos.
No corredor, encontrei o meu chefe, ele viu os livros que eu trazia debaixo do
braço e catou o do poema (uma tradução em prosa[i]).
Folheou o livro e começou a falar a respeito de El Cid, mas, curiosamente, não
a partir do poema ou do que a historiografia registra. O El Cid do meu colega
era o do épico hollywoodiano, de 1961, interpretado por Charlton Heston.[ii]
O Cid que mata o sogro num duelo, o Cid que é flechado nos arredores de
Valência (por um guerreiro muçulmano), morre e depois é colocado sobre um
cavalo (como se vivo estivesse) para comandar seus soldados na batalha final. O
Cid lendário que Hollywood deu um formato espetacular e pouco tem a ver com o
do poema medieval.
Não
recordo a aula que ministrei naquele distante 1991 ou 92, mas tenho certeza de
que foi muito simples e acho que apenas apresentei a “questão”, como se dizia.
Em relação ao filme hollywoodiano, afirmei que pouco tinha a ver com o poema,
mas era ótimo – daqueles que dá pra falar que é muito melhor do que o livro.
Ou, pelo menos, emociona muito mais que o Poema de Cid que acabara de
ler.
Recordo esse
episódio porque li dias atrás um livro intitulado Em busca de El Cid (“The
quest for El Cid”, no original), de um medievalista inglês chamado Richard
Fletcher.[iii]
Um trabalho minucioso a respeito do guerreiro que foi Rodrigo Díaz, reconhecendo,
de saída, a impossibilidade de um retrato do homem “real”. As fontes
documentais são escassas e o que o autor faz é inferir a trajetória do
guerreiro nos documentos oficiais da época. Pouca coisa. Além desses
documentos, destaque para textos literários escritos pouco depois da morte do guerreiro
– Carmen Campi Doctorus (“Canção do Campeador”) e Historia Roderici
– e alguns escritos árabes da época. O famoso poema, que o autor entende tenha
sido escrito por volta do ano de 1200, só é comentado ao final, não servindo
como referência para o estudo histórico do personagem, pois trata da construção
da lenda, de algo que El Cid “não foi em vida”.
Resumindo,
Rodrigo Díaz nasceu (provavelmente) em 1043 em uma família aristocrática de
Castela (em Vivar, 9 km de Burgos). Aos 14 anos passou a viver na corte do rei Fernando
I, próximo ao príncipe herdeiro (Sancho) e teve treinamento militar e também algum
aprendizado de Direito. Quando Sancho tornou-se rei de Castela, exerceu cargo
militar importante (chefe da guarda pessoal do soberano) e tornou-se conselheiro
político. Ao morrer o rei (em 1072, assassinado) Rodrigo perdeu seus
importantes cargos. O novo rei, Fernando VI, arranjou-lhe uma boa esposa, mas a
sua situação na corte acabou se deteriorando. Em 1081, acusado de traição,
exilou-se no reino muçulmano de Saragoça, para qual prestou serviços militares.
Reconciliou-se com Fernando VI mais tarde, mas não era um súdito dócil.
Desde o
exílio, passou a cumprir a trajetória de um capitão mercenário e não de um
súdito leal a Castela e/ou de um cruzado em pé de guerra com “a expansão do Islã”,
como a lenda o transformou. Pelo contrário, era um guerreiro “independente,
insubordinado e arrogante”, preocupado com a sua riqueza e seu renome (muito
semelhante a um condottiere). E, dessa forma, conquistou a cidade muçulmana
de Valência, em 1094, e a governou como uma espécie de príncipe, até a sua
morte, em 1099. Morte na cama, acentua o autor. A viúva permaneceu no governo
da cidade e, três anos depois, voltou a Castela, trazendo o corpo do marido
para ser sepultado no Monastério de Cardeña.
Mais tarde,
os monges do monastério iniciaram um culto ao guerreiro, em torno de sua
sepultura, com apoio do Reino de Castela, então em expansão e necessitado de
heróis. A partir daí, então, a criação de várias lendas – das quais o Poema
de mio Cid e também aquela utilizada no filme hollywoodiano de forma magistral:
a do herói morto, colocado em cima do cavalo, a conduzir seus guerreiros
cristãos contra os perversos infiéis.
É história
que não acaba mais a desse guerreiro medieval, que se perpetuou ao longo dos
séculos e foi recuperado após a derrota do Império Espanhol na guerra contra os
Estados Unidos, no final do século XIX, nas colônias de Cuba e Filipinas. Recuperado
como grande herói nacional.
Nenhum comentário:
Postar um comentário