Li e reli o livro de crônicas de Luiz Carlos Vaz (jornalista aposentado), intitulado A história de Abel, centrado nas suas lembranças de infância & juventude.[1] Resultado: fiquei remoendo a respeito da difícil arte de registrar memórias. Não é tarefa fácil. Numa crônica intitulada “Frases que ficam”, o autor anota uma série de frases que circulam no seu ambiente familiar, provocam boas risadas, e sabiamente comenta que, se escritas ou contadas de qualquer jeito, não tem “a menor graça e nenhum sentido”.
Haja talento e arte para transformar os episódios lembrados em textos que realmente possibilitem os outros perceberem a graça e o sentido que têm. Uma tarefa que o autor se propõe e realiza com competência. Com uma linguagem bem humorada e doses certas de lirismo e nostalgia, Luiz Carlos consegue transformar as experiências vividas e imaginadas por ele próprio e seu círculo familiar em crônicas engraçadas, comoventes e plenas de significado. Experiências, causos e registros de um tempo pretérito que, na apresentação, o autor diz estar devendo aos filhos, netos e sobrinhos – e também aos leitores do seu blog, acrescento.
Nascido em Hulha Negra no início da década de 1950, o
autor deixou a cidade com dois anos de idade com a família (pai, mãe e três
irmãos) e só a relembra a partir das lembranças da mãe, dona Loracy. A mãe e o
pai, por sinal, referências constantes no seu universo memorialístico e protagonistas
de muitos episódios narrados. A família se estabelece em Bagé, em casa com
enorme quintal, capaz de abrigar horta, árvores frutíferas e uma vaca, e o
autor ali viveu até início da década de 1970, quando partiu para Pelotas, para
realizar curso de Jornalismo.
Segundo o autor, suas histórias são as de muitas
famílias modestas da região da Campanha. A trajetória de um pai (comerciário) e
uma mãe (costureira) procurando o melhor lugar para criar os filhos,
proporcionar-lhes educação formal e prepará-los para o futuro. Os “estudos” dos
filhos como preocupação central da família – que o autor, caçula de quatro
filhos, realizou como manda o figurino.
Famílias modestas que viveram as transformações da sociedade
brasileira nos anos 50, 60 e 70, que o autor registra muito bem, utilizando-se
de diversos índices. Às vezes, indicando um súbito movimento de mulheres que
vêm atender os trabalhadores masculinos de polos de atividade econômica (a
exploração de carvão, em Hulha Negra; a criação do Polo Naval, em Rio Grande).
Às vezes falando de bens de consumo, como as “frigidaires” (geladeiras) e TVs
que, nos anos 50 e início dos 60, apenas existiam nas “melhores casas” e aos poucos
foram se difundindo por maior número de lares.
Talvez decorrente de sua atividade profissional (o jornalismo),
o autor é atento aos meios de comunicação do período: a revistas Figurino e
Jornal das Moças, que orientavam sua mãe (costureira) no atendimento às
freguesas; os discos com histórias infantis para escutar na eletrola (O
Pequeno Príncipe, com a voz de Paulo Autran e música de Tom Jobim); os
noticiários de rádio Repórter Esso e Correspondente Renner, que
mantinham a família sintonizada com o mundo; a difusão da televisão e a
possibilidade de assistir a chegada do homem à Lua, o Ringuedoze Liguigás e
a luta de Cassus Clay versus Joe Frazer. Vários elementos para narrar
uma vivência infantil e familiar numa pequena cidade do interior do Rio Grande
do Sul, fronteira com o Uruguai.
E algumas indicações preciosas sobre mudanças de
comportamento, como a indicada pelo modo como a mãe recebeu o marido, tarde da
noite, após ele vir de uma visita ao cabaré local. A mulher ajeitou uns pelegos
no chão, fora do quarto, e disse para ele: “Hoje tu dormes aqui”. Simples assim,
sem maior escândalo, indicando a tolerância que as mulheres tinham (ou eram obrigadas
a ter) em relação a certas exigências dos maridos.
Registrar memórias não é tarefa fácil. Requer linguagem
e arranjos especiais dos episódios a serem narrados – e o humor é geralmente uma
estratégia eficaz se usada com habilidade, como no caso das crônicas do livro. Claro
que um pouco de imaginação e invenção são ingredientes essenciais, como bem
reconhece o autor. “Eu minto muito, mas sempre mostro as provas”, ele afirma
como bom admirador de Gabriel García Márquez, que cita na epígrafe do livro: “A
vida não é o que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda para
contá-la”.
Recordar, reinventar – registrar memórias é tarefa que
exige empenho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário