Era uma tarde de chuva fina e tínhamos descido no cais
da Marinha, no Rio de Janeiro, após visitar a Ilha Fiscal. Deviam ser catorze e
trinta e achamos que poderíamos pegar o almoço na Confeitaria Colombo. Não era
perto, não era longe. Provavelmente um táxi nos fizesse dar muitas voltas e
resolvemos ir a pé. Pegar a Rua 1º de Março, dobrar na Rua do Ouvidor e, mais
adiante, virar à esquerda, numa rua que tinha o nome de um poeta, um poeta... que eu não lembrava o nome. Um poeta romântico, eu tinha certeza.
Eu havia deixado o guia de viagem no hotel, estava sem
mapa, e nos abrigávamos da chuva fina debaixo de uma sombrinha. A água molhava
nossos tênis e a Rose me perguntava:
– Tu sabes mesmo o caminho?
– Ora, como não. Já andamos por aqui diversas vezes – eu
respondia. Mas eu não lembrava o nome da rua, o nome do poeta que dava nome à
rua...
Quando dobramos uma rua (eu achava que era aquela), um camelô me disse: “É
essa, sim, a rua da confeitaria”. Eu li o nome na placa e tudo me veio de
cambulhada: o nome do poeta e seus versos. Gonçalves Dias e o canto do índio infeliz, prisioneiro de uma tribo inimiga: “Meu canto de morte, / Guerreiro, ouvi: / Sou filho das selvas, /
Nas selvas cresci; / Guerreiros, descendo / Da tribo tupi.”
Minha mãe recitava trechos desse poema
(I-juca-pirama). Complexo poema de temática indigenista. Um índio tupi é preso
pelos timbiras, colocado para ser morto ritualmente e depois banqueteado. Mas
ele implora para ser solto, para poder ajudar o pai – velho e cego, que está
perdido na floresta – e, quando o pai sabe disso – que ele não se deixou ser sacrificado
–, o pai sente profundo desgosto pelo filho. Que covarde!, grita o pai.
Ao me sentar diante de uma das mesas da confeitaria e
saber que o almoço tinha terminado – “Só lanches a partir de agora”, avisou o
garçom –, o poema ainda ecoava dentro de mim. Na verdade, era minha mãe
recitando o poema que eu lembrava. Era a
sua voz.
“Tu choraste em presença da morte?” – grita o pai para
o filho que implorou pela vida para ajuda-lo. “Na presença de estranhos choraste? / Não
descende o cobarde do forte; / Pois choraste, meu filho não és!”
Eu ria lembrando da mãe, as diferentes ênfases que ela
dava à voz de cada um dos personagens do poema, e pedi um conhaque (um brandy,
estava escrito no cardápio) em homenagem a ela. Ela aprovaria na certa e talvez
dissesse que era a pedida certa para aquecer o corpo depois da chuva.
Pedimos sanduíches que valiam uma refeição (o meu – um
beirute – seguramente uma refeição) e nos refestelamos. Observamos as
pessoas que nos rodeavam – um casal de alemães que se deliciavam com sorvetes coloridos, um
casal gay que se mirava gulosamente (na verdade, o homem mais velho olhava
o jovem parceiro de maneira intensa, quase engolindo-o, enquanto o rapaz não se desprendia do celular) e conversamos sobre a Ilha Fiscal.
Divertido ser turista numa cidade com tantas camadas
de história, ritmos e sabores. Na Ilha Fiscal, chegamos a ficar emocionados com
o fim do Império brasileiro e a Rose lembrou sua professora de História do
Brasil comentando “o último baile da monarquia”. Eu tentei falar de Gonçalves
Dias, do seu romantismo – o seu modo idealizado de abordar o mundo – e do
quanto tudo isso me moldou, mas desisti.
Guarita e cais da Ilha Fiscal. Ao fundo, o Rio de Janeiro. |
– Sou um pouco de tudo isso, esse romantismo, essa idealização. Ou era, sei lá. – Tentei falar. Mas
tudo muito complicado. Complicado demais para um dia de turistagem no Rio de
Janeiro. E fomos caminhar pelo centro da cidade. Agora sem precisar abrir a sombrinha, pois havia parado de chover.
Pegamos o
metrô na Estação Carioca, descemos na Arco Verde. A Rose queria comprar
uma bolsa, numa sorveteria colada ao Copacabana Palace, e eu não esquecia Gonçalves
Dias.
Naquele dia, catei o poema no Google e o reli. E, ao
meu modo, o recriei lembrando minha mãe: Um velho professor, de poucas glórias,
/ Guardou na memória um antigo poema. / E nos lugares mais inusitados – na Confeitaria
Colombo – / Ele o repete para quem quiser ouvir: / Meninos, eu ouvi / Minha mãe
cantar esses versos.
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Para quem não lembra o final do poema (eu não
lembrava), conto aqui o final. O pai leva o filho de volta a tribo dos
timbiras e o rapaz arma um escarcéu – “A taba se alborota, os golpes descem, /
(...) / Vozes, gemidos, estertor de morte”. O chefe timbira se convence que ele é valente e diz que ele merece ser honrado em morte ritual e depois ser devorado pelos guerreiros. “Este,
sim, que é meu filho muito amado!”, diz o pai.
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