Acordei lembrando a visita que fiz a Basílica de São
Francisco, na cidade de Assis, dois anos atrás. Mais especificamente, na igreja
superior da Basílica, onde se encontram os 28 painéis do ciclo “A vida de São
Francisco”, feitos por Giotto por volta do ano de 1300. Uma experiência única,
desses momentos inesquecíveis em que conseguimos entrar em sintonia com o lugar
e as obras artísticas ali expostas.
Meu grupo chegou na Basílica no meio da tarde e fomos
direto para a igreja inferior, onde se encontra o túmulo do santo. Havia missa
naquele horário, muitos visitantes e peregrinos, uma balbúrdia de vozes e
cantos, e não me senti bem. Lembrei dos afrescos de Giotto, consultei meu guia
de viagem (Guia da Folha de S. Paulo) e tratei de enveredar para a igreja superior,
que encontrei praticamente vazia, com uma luz suave, um silêncio enorme, e parece
que a magia começou ali.
Basílica de S. Francisco (ao fundo). |
Procurei o primeiro painel da série e fui parando
diante de cada um deles. São painéis muito narrativos, claríssimos na sua
simplicidade, na sua beleza de alguma ingenuidade e composição rigorosa. Pinturas que não oferecem maiores
complicações de compreender, sentir e se envolver. Fui observando um a um,
gostando mais desse do que daquele (o de número 15, São Francisco fazendo sermão
aos pássaros, é belíssimo) até que cheguei ao de número de 19, o do Monte
Alverne.
Seguindo painel por painel, tive a impressão de que chegara
ao clímax da narrativa criada por Giotto: o santo ajoelhado no Monte Alverne e
tendo a visão do Cristo sob a aparência de um serafim crucificado. Da imagem de
Cristo partem raios diretamente aos pés e às mãos do santo e sabemos que é
naquele momento que Francisco recebe os estigmas. O ápice da trajetória do
santo: a imitação completa do sofrimento vivido por Cristo para a salvação dos homens.
Painel 19: S. Francisco no Monte Alverne. |
Devo dizer que nessa hora fiquei profundamente emocionado
e logo senti um grande cansaço. Uma emoção intensa, um cansaço bom – desses que
vivemos quando cumprimos uma tarefa almejada. Nesse caso, a sensação de ter completado
o percurso de um homem que foi criado desde menino dentro do imaginário cristão,
que procurou compreendê-lo e que, de alguma maneira, chegou a uma compreensão mínima
a respeito. Não um entendimento racional (este ainda estou procurando), mas um
entendimento intuitivo e emocional sobre um dos elementos centrais da cultura
cristã: o fascínio pelo sofrimento, pelo martírio, que tanto marcam a
Cristandade.
A partir do painel 19, meu fôlego se esgotou e a muito
custo continuei a visitação. O painel 20 aborda a morte do santo e fiquei dando
passos entre um painel e outro, examinando cada detalhe, reexaminando, certo de
que estava no coração da Cristandade.
Acordei hoje de manhã lembrando justamente desse
momento: o da visitação ao painel de número 19, a emoção profunda e a sensação
de ter alcançado alguma compreensão sobre uma dimensão da Cristandade (a
sedução pelo martírio) que muito me intriga e atrai. E, ao relembrar esses
momentos dois anos depois, me percebi distante do sofrimento de Francisco e da
atração pelo martírio que tanto a Cristandade cultiva.
Ao constatar o quanto o martírio seduziu São Francisco
de Assis e como ele conseguiu alcança-lo, me sinto – hoje – distante desse fenômeno
central da Cristandade. Aliviado, devo concluir. E humildemente pronto a
realizar as mesmas coisas de sempre, as mesmas coisas que fiz a vida inteira, sem
o pesado fardo da culpa e da penitência. Ou, ao menos, com o peso do fardo
diminuído.
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