No primeiro dia avistei três rebocadores ancorados no
cais e diversas vezes procurei as chatas que costumavam ficar estacionadas ao longo
do rio. Chatas, para quem não sabe (me disseram que não são mais utilizadas),
são navios exclusivamente de carga, sem motores, e que precisam de rebocadores
para se locomover. As chatas eram utilizadas para transporte de areia e brita na
Lagoa dos Patos, entre as cidades de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, ao menos até os
anos 70 do século passado.
Um tio avô era maquinista em um rebocador, vivia
fazendo essas viagens (trazendo e levando chatas) e o
que sei a respeito desse assunto ouvi ele contar. Era calado esse meu tio avô
(irmão da minha avó materna) e não deve ter me contado muita coisa. Sujeito de
poucas palavras, magro, a pele curtida pelo calor das máquinas, do sol e do
vento da lagoa, fazia um tipo de lobo do mar (ou de lagoa, para ser mais
preciso) que agradou ao guri de 14 anos que eu era quando naveguei com ele.
Isso foi no final dos anos 60, em 1969 ou 70. A minha
família morava em Porto Alegre e esse tio costumava nos visitar quando aportava
na Capital. Uma noite, o pai e ele estavam conversando na sala (provavelmente
bebendo conhaque Dreher, a TV desligada) e lá pelas tantas me chamaram e
perguntaram se eu queria viajar de navio até Pelotas. Aceitei, claro
Depois soube que fora ideia do meu pai, que bem sabia
que aquela seria uma experiência única para o guri de apartamento que eu havia me transformado. No outro dia de manhã bem cedo, eu estava numa pracinha que
fica na beira do cais, esperando meu tio. Naquele tempo o Muro da Mauá ainda
não fora construído e era possível chegar até cais e seus armazéns. Meu tio
chegou, me avistou no local combinado e me chamou para embarcarmos no rebocador. Ele
era o chefe do setor das máquinas, tinha uma cabine própria e foi nessa cabine
que me instalei.
Foi uma viagem e tanto. O rebocador manobrou no Guaíba,
estendeu os cabos de aço até a primeira chata (eram duas, a outra ficava presa
igualmente por cabos de aço a da frente) e fomos na direção de Pelotas. Navegamos
o dia inteiro, pegamos um temporal no meio da noite e nem sei que horas
chegamos. Eu dormia quando o navio aportou e, quando subi ao convés, estava
amanhecendo. Um amanhecer de nuvens avermelhadas, nada parecido com “a aurora
dos dedos róseos” dos poemas dos livros escolares, e fiquei maravilhado. Uma aurora
sangrenta, com o vermelho do céu refletido nas águas do Canal São Gonçalo. Peguei minha sacola, avisei o marujo que estava de
guarda (acho que é assim que se diz) e fui caminhando pela zona do porto até a casa dos meus avós maternos.
Lembrei disso olhando o Guaíba da janela do hotel, em
Porto Alegre, na semana passada. Os rebocadores estavam lá, parecidos com
aquele em que viajei no final dos anos 60, mas não avistei as chatas. O transporte
fluvial deve ter mudado muito nesses mais de 40 anos e pouco sei a respeito
disso. Meu tio avô morreu, meu pai morreu, mas a paisagem do Guaíba me indica
que toda essa paisagem fluvial – daqui até o Canal São Gonçalo, até o Canal do Rio Grande – ainda é capaz
de maravilhamentos. Basta olhar, olhar com os olhos da imaginação.
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